O novo Ashram minimalista

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Diálogo do letrado Fernandes com o taberneiro Jansenista (continua o repartee callejero):



Diz o Sr. Fernandes:
Há quem diga que no caminho para, e no próprio matadouro, o animal “sofre” ao ponto de a carne perder qualidades. Não sei, não sou especialista em “sensibilidade ecologista”, mas é o que dizem os mesmos – os mais militantes, pelo menos – que se indignam com as touradas. Talvez não seja verdade. Pode comer a sua costeleta de novilho descansado. Longe da vista, longe do coração.

Diz o Sr. Jansenista:
Não é necessária qualquer “sensibilidade ecologista”, basta ver o quadro normativo que enquadra as actividades do abate. Os veterinários (e um batalhão de funcionários que têm por única função zelarem pelo cumprimento das leis e das directivas e regulamentos comunitários) encarregam-se de que nada se passe “longe da vista”.
Mas o que importa é que, por maioria de razão, acaba de admitir que há sofrimento, extremos de sofrimento (porque nada lá se encontra a mitigá-lo), na arena.
Gostaria de ouvi-lo dizer expressamente que infligirmos sofrimento por pura diversão é um exercício de liberdade. Os sádicos de todo o mundo vão agradecer-lhe a solidariedade.
E mesmo o espectro de gerações de proxenetas, algozes e negreiros virá agradecer-lhe em sonhos essa glorificação do sofrimento “tradicional”, essa defesa estrénue da “liberdade” de oprimir e impor sofrimento.

Diz o Sr. Fernandes:
(Por muitos funcionários e veterinários que existam, os militantes da causa animal continuam a dizer que os animais sofrem de stress a caminho do matadouro, e no matadouro. Não sou eu que o digo. E também se sabe que bicho de “aviário” não tem uma vida muito…vamos lá ver como explico isto…agradável?)
Pronto, só faltava misturar animais e seres humanos.
“E mesmo o espectro de gerações de proxenetas, algozes e negreiros virá agradecer-lhe em sonhos essa glorificação do sofrimento “tradicional”, essa defesa estrénue da “liberdade” de oprimir e impor sofrimento.”
Isto também deve um nome qualquer, e até em latim ou em grego, antigo e tal, com ou sem equivalente moderno, eu é que agora não estou a ver qual é.
“Gostaria de ouvi-lo dizer expressamente que infligirmos sofrimento por pura diversão é um exercício de liberdade.”
Confesso: gosto muito de comer um belo naco de foie-gras, de preferência com um Tokaji 5 Puttonyos. Conta como pura diversão? É que dizem que o pato e o ganso passam um mau bocado

Diz o Sr. Jansenista:
Que o Sr. Fernandes vá multiplicando, de post para post, as suas confissões (não contritas) acerca das suas práticas que acarretam sofrimento para não-humanos, eis o que não sei que prova em termos dialécticos – mas sei bem o que mostra.
Quanto a renegar paralelismos, é o velho repúdio do contínuo entre espécies, o argumento das almas descarnadas no ápice da “grande cadeia do ser” (remeto-o para A.O. Lovejoy, lá verá o latim que reclama) – parecendo portanto que renega a sua condição animal, e que desligou a sua empatia para o sofrimento alheio (a menos que queira sugerir que a) há uma qualquer incomparabilidade entre o sofrimento dos não-humanos e o dos humanos, b) que nos humanos não é a pura animalidade que sofre).
Para lhe facilitar a meditação, há uma forma de sofrimento que é quase exclusiva dos humanos, que é a humilhação (entre chimpanzés e bonobos ela já foi observada, mas não quero beliscar o seu argumento da “superioridade” entre espécies).
Seja sibarita à vontade e continue a devorar foie-gras de pleno borco. Um dia quando o seu corpo lhe apresentar a factura de tanto excesso há-de esperar, legitimamente, que os outros tenham empatia pela forma puramente animal(esca) como experimentará o seu sofrimento físico, a sua dependência e a sua vulnerabilidade – que obviamente, coerente como sou, não lhe desejo.

Diz o Sr. Fernandes:
“a) há uma qualquer incomparabilidade entre o sofrimento dos não-humanos e o dos humanos”
Até pode haver, não sabia? Chama-se “noção do passado” e, até ver, só os humanos (e talvez alguns primatas superiores) a têm. Já dizia Borges, os animais vivem no presente…
Preocupe-se com o seu corpo, que eu preocupo-me com o meu, vale? (só me faltava esta…)

Diz o Sr. Jansenista:
Que a maior parte dos animais não-humanos tem noção do passado é evidente – faz parte do processo de aprendizagem com o qual eles apuram a sua capacidade darwinista de sobrevivência. Já pensou porque é que os animais na selva e na savana fogem dos seus predadores antes de qualquer ataque? Será porque “vivem no presente”? Coitado do Borges, deixe-o lá em paz, com liberdade poética a ideia de “noção do passado” passa a significar qualquer coisa.
O Sr. Fernandes já ouvi falar da gorila Koko que narrava o seu passado através de linguagem gestual?
Mais grave: o Sr. Fernandes quer negar a natureza humana, ou os direitos humanos inerentes àquela natureza, àqueles da nossa espécie que, por um qualquer infortúnio, não chegaram a adquirir, ou entretanto perderam, a sua “noção do passado”?
Quanto ao seu corpo, não me preocupo demasiado (embora a minha empatia pela animalidade dos outros não me torne indiferente – e aqui está o cerne do que nos distingue) – apenas estava a adverti-lo para as consequências “hubrísticas” daquilo que o Sr. Fernandes, com uma certa dose de ostentação, andava a reclamar que fazia com ele. Deixe de referir as suas proezas gastronómicas como argumento, e eu deixo de usá-las como premissa, vale?
Podemos nós admitir que o Sr. Fernandes esteja disposto a reconhecer que os toiros também têm o direito de se preocuparem com o corpo deles? Ou o seu gozo sanguinário dá-lhe a si a prerrogativa de lhes negar o direito de não sofrerem na arena?

Diz o Sr. Fernandes:
Sim, muito evidente…Poupe-nos às tergiversações darwinistas de Reader’s Digest. Estas coisas são um bocadinho mais complicadas (ou mais simples como a resposta a:”…porque é que os animais na selva e na savana fogem dos seus predadores antes de qualquer ataque?”).
Quanto às advertências para as consequências do que faço na minha esfera privada, dispenso (deixemos passar essa de “referir proezas gastronómicas como argumento”; foi levado pelo entusiasmo, certamente). Mas é livre de as fazer, claro. Já sobre imputar-me “gozo sanguinário”, olhe, não sei o que lhe diga. Dá-lhe jeito para a tese? Força.

Diz o Sr. Jansenista:
O Sr. Fernandes está a ficar algo obscuro na sua argumentação. Parece que leu Darwin no Reader’s Digest, porque o nome daquele evoca esta publicação. E porque não?
Assumindo que está a falar com um daqueles “imbecis analfabetos” que se condoem com o sofrimento dos toiros, adverte para o facto de estas “coisas” serem “um bocadinho mais complicadas”, e logo de seguida “mais simples”.
Na minha inocência de “taberneiro” “provinciano”, sigo alegremente o seu paternalismo de cicerone pelos labirintos da cultura, mas ó homem decida-se, vá buscar o fio de Ariadne, não vá sair-lhe outro célebre e possante toiro ao caminho!
Peço já desculpa de ter designado por “proezas gastronómicas” a ostentação de que gosta de rabo de boi à cordobesa, de foie gras e de vinhos de difícil pronunciação: manifestamente para o Sr. Fernandes não são proeza, são rotina.
A obscuridade adensa-se quando parece rejeitar o “gozo sanguinário” como o móbil do seu deleite com a fiesta. Se o Sr. Fernandes já foi a uma tourada, como eu já fui, terá visto sangue, não? Ou será que só esteve em touradas na Califórnia, com aquela mantinha de velcro a que aderem os ferros?
Quando o touro começa a esvair-se em sangue depois de uma sorte de varas ou do tércio de bandarilhas o Sr. Fernandes levanta-se e vai tomar uma limonada cá fora? O seu íntimo protesta contra o espectáculo cruento? A sua empatia interpela-o?
Não? Então assuma, que raio, assuma! Não bata contrito no peito que é contra o espectáculo do sofrimento ao mesmo tempo que o defende! Assuma! Não hesite! Não obscureça! Não fuja às questões! Eu debato as que o Sr. quiser, com ou sem o Reader’s Digest!

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