Sempre desconfiei dos que falam com aquele tom presunçoso de quem deve muito ao passado – e por isso se apegam a ele como coisa sua, como privilégio seu, como flor à lapela.
Desgraçadamente para eles, o governo do mundo foi tomado de assalto quase exclusivamente por gente que presume nada dever ao passado: umas vezes porque efectivamente não deve nada (emergindo das penumbras de gerações sucessivas de pobreza e servidão), outras porque, por má consciência, quer apagar o rasto da dívida, outras ainda porque empunha o facho da radicalidade inovadora e não quer embaraçar-se em contabilidades e alusões pretéritas.
Compreendo o horror com que os passadistas (e os poseurs e os parvenus que pedem àqueles para lhes reinventarem os pergaminhos) sentem desmoronar-se o edifício aos embates dos iconoclastas – mas se perscrutarmos o passado pouco mais veremos, muito proeminente sobre um ténue ruído primordial e indiferenciado, do que um rasto de iconoclastia que apenas teve o tempo suficiente para tornar-se canónico e respeitável.
Foram sobretudo homens sem passado, sem respeito pelo passado, em suma, que foram erigindo o nosso passado comum – e por isso o tradicionalismo, além de propositado anacronismo, releva da miopia histórica, resvalando na idolatria de homens demasiado humanos, homens cuja única virtude, vista do presente, é terem morrido já há muito tempo, e terem-se tornado tão perigosos, para o presente, como os dinossauros.
A Europa já pagou demasiadas vezes com sangue as suas impiedades iconoclastas para não percebermos que devemos a elas o principal alicerce da nossa liberdade e da nossa civilização. Mesmo os que melhor conheceram o passado começaram a quebrar-lhe a grilhetas para que algo de novo pudesse florescer. A linha divisória que vem de Erasmo e culmina em Montaigne e Shakespeare pode resumir-se ao modo como corajosamente a nossa linhagem civilizacional foi obrigada a questionar-se e a enfrentar e a saber lidar com o vazio. O génio supremo de Shakespeare vem do facto de ele ter sido o mais reflexivo dos poetas, e ao mesmo tempo o mais desprovido de dogmas, o mais liberto do «som e fúria» da piedade e da veneração às coisas legadas. Nele não há qualquer genuína transcendência, nem sequer a do saudosismo: há a mais genuína e radical imersão no aqui e agora da circunstância dos «invólucros mortais» que nos transportam, a pura imanência, a transitoriedade contaminada, o vazio.
Quando o releio sinto que ele nos ensina, algo paradoxalmente, que o passado nada significa (para além de um trampolim para o presente), e que há algo no banho lustral do cepticismo que é crucial para nos resgatar da alienação a que os ícones e os cânones pessoalmente nos convidam.
Desgraçadamente para eles, o governo do mundo foi tomado de assalto quase exclusivamente por gente que presume nada dever ao passado: umas vezes porque efectivamente não deve nada (emergindo das penumbras de gerações sucessivas de pobreza e servidão), outras porque, por má consciência, quer apagar o rasto da dívida, outras ainda porque empunha o facho da radicalidade inovadora e não quer embaraçar-se em contabilidades e alusões pretéritas.
Compreendo o horror com que os passadistas (e os poseurs e os parvenus que pedem àqueles para lhes reinventarem os pergaminhos) sentem desmoronar-se o edifício aos embates dos iconoclastas – mas se perscrutarmos o passado pouco mais veremos, muito proeminente sobre um ténue ruído primordial e indiferenciado, do que um rasto de iconoclastia que apenas teve o tempo suficiente para tornar-se canónico e respeitável.
Foram sobretudo homens sem passado, sem respeito pelo passado, em suma, que foram erigindo o nosso passado comum – e por isso o tradicionalismo, além de propositado anacronismo, releva da miopia histórica, resvalando na idolatria de homens demasiado humanos, homens cuja única virtude, vista do presente, é terem morrido já há muito tempo, e terem-se tornado tão perigosos, para o presente, como os dinossauros.
A Europa já pagou demasiadas vezes com sangue as suas impiedades iconoclastas para não percebermos que devemos a elas o principal alicerce da nossa liberdade e da nossa civilização. Mesmo os que melhor conheceram o passado começaram a quebrar-lhe a grilhetas para que algo de novo pudesse florescer. A linha divisória que vem de Erasmo e culmina em Montaigne e Shakespeare pode resumir-se ao modo como corajosamente a nossa linhagem civilizacional foi obrigada a questionar-se e a enfrentar e a saber lidar com o vazio. O génio supremo de Shakespeare vem do facto de ele ter sido o mais reflexivo dos poetas, e ao mesmo tempo o mais desprovido de dogmas, o mais liberto do «som e fúria» da piedade e da veneração às coisas legadas. Nele não há qualquer genuína transcendência, nem sequer a do saudosismo: há a mais genuína e radical imersão no aqui e agora da circunstância dos «invólucros mortais» que nos transportam, a pura imanência, a transitoriedade contaminada, o vazio.
Quando o releio sinto que ele nos ensina, algo paradoxalmente, que o passado nada significa (para além de um trampolim para o presente), e que há algo no banho lustral do cepticismo que é crucial para nos resgatar da alienação a que os ícones e os cânones pessoalmente nos convidam.
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