O novo Ashram minimalista

domingo, 2 de setembro de 2007

Cronica de Agosto 20 - Panteismo nas rochas

Com menos concentração num só trabalho, com disponibilidade para passear, ver TV, ler jornais, e até com o acesso ao wireless (limitadíssimo, que o anti-vírus não deixa mais), este ano sinto-me menos isolado do mundo, e menos desligado de algumas rotinas, de algumas (algo neuróticas) preocupações mundanais. E no entanto férias que são férias deveriam representar esse corte radical (está bem, não pego no automóvel há mais de dez dias), uma espécie de cápsula de tempo reservada para se viver sem preocupações, como os velhos estilitas no deserto da Síria, ou o mais recente Charles de Foucauld, o eremita do deserto convertido em monge trapista.
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À noite vejo a barafunda nos aeroportos, a caramelada desembarcada do Nordeste Brasileiro para intermináveis filas à espera da bagagem não-transviada, tudo uma confusão, tudo um sobressalto, uma espécie de hora de ponta na estrada de Sintra, agora com mais cheiro a bronzeador e com mais fitinhas e missangas, mas a mesma sensação de curral. De manhã, em revoadas de vento marinho ainda não concentrado na nortada, sento-me nas rochas cobertas de algas e remiro os pequenos aquários consentidos pela maré-baixa, uma espécie de pequenas galáxias multi-coloridas que espaçadamente fervilham no assalto de uma onda maior. Há muito a aprender ali, em especial sobre a riqueza de um universo vivo que, por uma vez, não é dádiva humana, que existe independentemente de nós, que é indiferente à nossa presença.
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As férias também servem (ou deviam servir) para isso, para sairmos da casa e da rotina, para mudarmos de cadência e de atenção, para deixarmos falar e colorir aquilo que a nossa distracção (que vaidosamente designamos por concentração) remete à escuridão e ao silêncio. O ruído da multidão, a confusão da gente, as filas no aeroporto, não são coisas necessariamente más, são expressões de vitalidade humana, reflexos e rastos do esforço que as pessoas fazem para serem felizes (e quem sou eu para julgá-las pelas opções que fazem); o mal está em que essas coisas praticamente absorvem em exclusivo dois bens escassíssimos, a atenção e o tempo, e deixam muito pouco de ambos para outras formas mais serenas e suaves de fruição da vida, aquelas formas nas quais o Sol doira sem literatura.

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