Em férias, uma voz inglesa surpreende-me no telemóvel. Um amigo galês, um jovem intelectual de grande gabarito, brilhante, profundo, e no entanto dotado de uma jovial disponibilidade com a qual se empenha em vigorosos debates por causas nobres, a mesma alegria com que alinha em momentos de descontraído companheirismo (um sinal certo de virtude). Recordo-o frequentemente em acção no bom combate, um exemplo, um camarada ímpar.Telefona-me a saber se o Prof. X é acreditado na Ordem dos Médicos portuguesa. Investigo, respondo que não, mas na investigação descubro que o charlatão é «especializado» na «cura alternativa» de formas raras de cancro, o Sarcoma de Ewing. Receio o pior, mas afinal era muito pior do que simplesmente pior: o filho, um adolescente ainda. Ali o senti na segunda conversa, um hiper-racional abandonado ao desespero da última esperança, lançando-se in extremis nos braços do charlatanismo, reduzido à dimensão mais reconditamente humana da dor, que é a dimensão animal e irracional, travando o mais horrível e desesperado dos combates. Doeu-me dar-lhe a informação, porque percebi que estava a fechar-lhe uma porta, a apagar mais uma luz e a secar mais essa fonte de alento irracional. Despedimo-nos até um dia, e tentei em vão rememorá-lo nos seus momentos de brilhantismo, de pujança intelectual, a ver se apagava o resto. Passei uma noite agitada a remoer no drama.
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