O novo Ashram minimalista

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A pior forma de totalitarismo está a (re)nascer


No COMBUSTÕES, novo diagnóstico sobre um tradicionalismo que se agarrou aos despojos das naus quando bastavam algumas braçadas para chegar a terra firme – e agora depressivamente se eterniza em narrativas glorificadoras da ideia de que valeu a pena morrer afogado a uma centena de metros da praia.
Concordo com quase tudo (salvaguardadas as minhas convicções republicanas).
Gostava de sublinhar, contudo, que a nova obsessão com o baixo-ventre, que refere, não é monopólio desse tradicionalismo, bem pelo contrário – e é um dos pontos em que mais se evidencia que o velho puritanismo «moralão» se deixou arrastar para áreas nas quais só pode averbar derrotas. É que aceitar discutir os temas é já aceitar a sua politização, envolve já a resignação à queda dos anteparos do pudor e do silêncio que sustentaram, desde tempos imemoriais, a liberdade privada e o código sagrado da intimidade, procurando defendê-los da devassa inquisitória.
Se um dia tivermos que fazer o inventário dos recuos civilizacionais ao longo dos tempos, nestes últimos 50 anos terá proeminência essa «politização do corpo», essa súbita convicção de que é possível, e é legítimo, apropriar para o político, para o social, para o económico, para o jurídico, o último reduto da liberdade que essa auto-apropriação do nosso corpo pareceu configurar e propiciar, e da qual a pobre convicção libertária de John Locke julgou que toda a outra liberdade (muito menos palpável, muito mais contingente da sobredeterminação ideológica) acabaria por decorrer.
Outrora um fosso de silêncio e pudor defendia essa cidadela, mantinha os inquisidores ao largo. Hoje a charanga do totalitarismo rotulou esse fosso de «hipocrisia» e de «obscurantismo», e já marcha imparável, com a habitual estridência do «politicamente correcto» e dos «ventos da História», para nos negar essa última liberdade a-jurídica, a-política, amoral e gratuita.
Como sempre sucedeu e sempre sucederá com as irrupções do totalitarismo, a maioria aplaude entusiasmada. Estão todos prontos a deitar pela borda fora um esforço emancipador que durou 300 anos.

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