A cena literária "high-end" julga-se prisioneira da esquerda, mas isso só pode ser ou um equívoco (daqueles que alguma idiotice paranóica de extrema-direita costuma cometer quando toma tudo por comunista) ou uma vontade de ofender uma tradição de esquerda que, por um breve momento histórico, ainda nutriu ideais e se guiou e sacrificou por eles.
Essa cena está antes refém dos seus gostos "radical chic", a convicção "cristã-progressista" de que é possível o melhor dos dois mundos, o coração à esquerda e a carteira à direita – uma aparência de que se é capaz de combater por ideais quando se tem garantida a classe executiva e a suite num cinco estrelas, o contrato milionário e o paraíso fiscal nas Canárias a apoiarem a aparência de desprendimento, de solidariedade, de desprezo pelo dinheiro.
A cena literária tornou-se tão acomodada e decadente e hipócrita como a cena das "estrelas do rock" com os seus "Live Aids", antes de a tecnologia "peer-to-peer" minar todo esse mercenarismo complacente e traficado. Tornou-se cobarde, agitando os pendões da liberdade e da contestação apenas quando constatou que isso era seguro e lucrativo – respondendo à amnésia romântica de um público lorpa e ávido de "lideranças culturais", e arregimentando em seu apoio um panteão de pensadores genuinamente independentes e corajosos – mas todos convenientemente já mortos.
Nalguns oportunos (comercialmente vantajosos) momentos de auto-crítica, a cena literária remete ainda para um saudosismo postiço, lamentando os tempos presentes e procurando autoentrincheirar-se com fogo nutrido contra a nova concorrência – invariavelmente crismada pelos bonzos "incumbentes" como literatura "light", "low-end".
Evoca-se uma "época dourada", de preferência não muito distante (para se poder tirar ainda proveito dos direitos de autor), reescrevendo a história cultural à custa da tal "amnésia romântica": nas vestes de profetas irreverentes aparecem aqueles que a memória recorda ainda como fariseus petulantes invariavelmente dedicados ao servilismo e à auto-promoção, as obras-primas de agora são encomendas de "nesca-literatura" que monotonamente exploraram a "short tail" do "star-system", ou seja a visibilidade de nomes "consagrados" (esta é a palavra-chave) junto de leitores acríticos e acarneirados, e tudo ressuma, a observadores não-desmemoriados, à "via dolorosa" que levou à presente confusão circense entre o genuíno e o berrante, à confusão entre mérito e celebridade.
Mas o pior de tudo é que, em jovem, conheci uma outra geração de "cena literária" que ao menos gozava com a sua própria hipocrisia "highbrow", que jogava a cartada da "esquerda-caviar" com deleite, com ironia, com genuíno desprezo pelas massas – com perfeito "tacitismo ironista", tudo rematado em cocktails repletos de subentendidos cúmplices e de "insider jokes". Parece que a ironia se perdeu, e o gozo com ela, e que os sumos-sacerdotes da nova cena literária são tão crédulos que se tomam infinitamente a sério e caíram na armadilha da auto-mistificação, infinitamente replicada e reverberada nos seus fóruns e nas revistas de especialidade com que legitimamente procuram glorificar o seu mester. Uma qualquer "Lei de Gresham", ou uma "entropia de ruído", ou a "long tail" da democratização cultural, privou-os aparentemente da capacidade de detectarem como plástico o plástico que vendem.
É isso que aprisionou a cena literária, e não a esquerda – são quando muito companheiros de calabouço, perdida que está em ambos essa capacidade de distanciamento irónico, entregues que estão ambos às limitações de crentes sinceros na sua idolatria auto-poiética.
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