O novo Ashram minimalista

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Crónicas Estivais: Dia 30

Cada vez que estava entre uma maioria de estrangeiros ocorria-me pensar na vida que teriam quando os perdesse de vista; observava-os e tentava imaginar. Normalmente isso traduzia-se na conjectura de uma vida muito sorridente e realizada, mas vivida em climas muito frios, em cidades muito cinzentas e húmidas. Imaginava-os apreensivos e entristecidos com o abandono do Sol e do mar, mas compensando-o com o calor afectivo de sorrisos, como se vivessem num chilrear permanente de gargalhadas, em profissões muitos disciplinadas mas muito gratificantes, com rotinas de convívio e de desporto, com valores cívicos perfeitamente interiorizados (uma espécie de sóis com luz interior no meio da escuridão do inverno).
Este ano, curiosamente, imaginei exactamente o inverso. Buscando uma explicação predominante entre as várias que me ocorreram, julgo que isso se deve ao espectáculo de sofreguidão e incivilidade a que assisti nos pequenos almoços do Hotel.
Um amigo meu costuma brindar as manifestações de impaciência com a interrogação irónica: "não te deram o pequeno almoço em casa?". Lembrei-me várias vezes da frase, vendo as hordas embrutecidas avançarem para o buffet, em três, quatro ou mais assaltos por pessoa: dois ou três tipos de sumo, feijão em tomatada com ovos mexidos, salsichas, bacon, torradas, salada de frutas, iogurtes, carradas de pão com todo o tipo de geleias, ovos cozidos, tudo rematado com grandes almoçadeiras de café com leite.
Se eu tivesse tentado uma só vez a proeza pantagruélica que vi quotidianamente praticada, teria ficado doente por uma semana, pelo menos. Como assisti apenas, saí do restaurante sempre enjoado, impressionado com a selvajaria malsã, e mais impressionado ainda com os poderes incentivadores da fórmula do «pequeno almoço incluído» – de facto, como se lá de onde chegam eles não tivessem direito a pequeno almoço, ou ele fosse excessivamente escasso.
Por tudo isto, este ano imaginei os «estrangeiros regressados» em situações que, coladas uma às outras, dariam porventura para uma segunda versão de La Grande Bouffe. Imaginei-os em quartos frios, sinistros, perversamente crepusculares, sem quaisquer factores de redenção ou compensação, entregues a sobrehumanas pulsões animalescas, saudosos dos momentos estivais em que a ilusão de gratuitidade lhes consentia soçobrarem irrestritamente em orgias de ingurgitação. Um sonho pecuário, em suma, com o Algarve a servir de manjedoura.

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