O novo Ashram minimalista

sexta-feira, 11 de abril de 2008

A Crónica que não escrevi: Eu e os Livros – um dénouement borgesiano

É tudo uma questão de combatermos o tempo, a invasão irresistível de mais livros do que aqueles que podemos ler. Acumular livros – a biblioteca – e tentar organizá-la, rematá-la, é a suprema ilusão quixotesca do «contemptus mundi», seja nos reservados de Vilarinho seja nos sótãos de Vila Pouca seja na imaginação do elenco de livros que levaríamos para uma ilha deserta – um exercício de imaginação demasiado recorrente para não ter uma significação poderosa.
O Professor Aronnax pergunta ao Capitão Nemo a razão para a vasta biblioteca com a qual percorre, no Nautilus, as vinte mil léguas submarinas, e Nemo explica que procurou acumular o máximo possível, e tenta agora iludir-se com a convicção de que, desde o momento do embarque, nada mais se disse, escreveu e publicou em terra.
É o sonho feliz, a peripeteia possível, de todos os bibliómanos – a esperança de podermos abarcar a informação toda e organizá-la de forma mais completa e coerente do que o constante devir do mundo no-lo consente. É o sonho do mais rematado reducionismo luciferino, a suprema arrogância – e a proporção de antiquaristas é exagerada nestes domínios porque existe a saudade de tempos em que – julgamos, iludindo-nos a nós próprios – seria mais possível um conhecimento universal, ao mesmo tempo mais amplo e menos efémero, menos contingentemente exposto às devastações do tempo.
Não há resgate possível nesta idade pós-proustiana, e às vezes penso se o Necronomicon (disse-o ao meu anfitrião) não será a ilusão oposta à da Biblioteca de Babel: a ideia, não do convívio pluralista de livros, mas a da aproximação, através deles, a uma «chave universal», uma ideia de síntese que no fim inutilizaria os próprios livros, um triunfo extra-mundano alcançado, à la Münchhausen, no interior da própria Torre de Marfim.
Curioso, penso, enquanto tiro a chave da ignição e piso o cascalho ruidoso que me conduz de regresso ao meu Morgadio de Vila Pouca, o próprio Jorge Luis Borges tinha advertido para essa anti-Babel em El Espejo y la Mascara. Homem demoníaco, desmultiplicado em advertências contra ele próprio – talvez a melhor digestão omnívora de livros de que temos testemunho.
Às vezes penso no que ele diria se visse estes parentes afastados do vale do Tâmega (um caminho que bifurca no jardim das raízes obscuras) a venerarem os livros e a odiarem os livros como veneram e odeiam o mundo – e a invocarem, para fazê-lo, o nome dele.

1 comentário:

margarida disse...

Se há um mundo sacro, no que à erudição respeita, deve seguramente passar por aqui…
Eu já consciencializava que desconhecia tudo.
Agora percebo que nunca saberei nada.

(e como demonstrar a profunda gratidão por estas “paisagens”, mesmo que impossíveis, ou, sobretudo, mitológicas?
Não há pena, nem lira, nem esquiço.
Sobra o espanto.)

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