O novo Ashram minimalista

quarta-feira, 9 de abril de 2008

A Crónica que não escrevi: Eu e os Livros, I

A neblina na estrada dissipa-se e perco a ansiedade com as tabuletas que indicariam o caminho. Com a aproximação do carro o meu anfitrião aparece à porta, sorridente.
"Então é hoje a devassa?", e desde o primeiro metro dentro do seu covil começo a sentir-me intimidado. Há um cheiro intenso a cevada torrada e a pão queimado.
"Antes que comece a debitar-lhe Almarjão, Almarjão, Almarjão, deixe-me descansá-lo", continua, "hoje a coisa vai ser ligeira, não lhe mostro os pratos mais pesados".
Mostra-me Scherzo: Poemas dos 30 Anos (1979), de Pedro Maurício de Annes-Caro. "Se adivinhar quem é, tem acesso aos «reservados»". Annes-Caro? Não conheço.
Dá uma gargalhada: "É Luís Arouca, o ex-Reitor da Universidade Independente, conhecia-lhe o «inglês técnico» e não lhe conhecia a veia poética? Que cultura é a sua?".
A casa, a mansão, tem um exterior levemente decrépito (dissuasor de assaltos, adianta), e não se vê da estrada, ocultada por umas latadas à saída de Vilarinho das Paranheiras. "Agora fizeram a auto-estrada, vamos voltar aqui ao bucolismo".
Conheço-lhe o eclectismo e o gosto pela bizarria, mas ele obstinadamente defende-se com os modernos (pressente, correctamente, que estou saturado de ouvi-lo citar Almarjão, um tique dos antiquários).
"Olhe aqui, mesmo para si", e estende-me, de Cândido dos Santos, António Pereira de Figueiredo, Pombal e a Aufklärung: Ensaio sobre o Regalismo e o Jansenismo na 2ª Metade do Século XVIII (1982). A sombra tutelar do Abade de Baçal paira naquele recanto transmontano, e o meu olfacto imagina uma combinação de musgos, papel amarelecido e mosto. Inspiro fundo e volta o cheiro enjoativo a pão queimado.

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