O novo Ashram minimalista

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Um milagre de bondade e de duvidas

Por toda a admiração que tive pela pessoa e pelo pontificado de João Paulo II, há coisas que não me agradaram de todo, e uma delas foi a multiplicação desenfreada das canonizações: se em vez de uma centena de santos tivermos cem mil, como poderemos obter deles uma informação sequer, quanto mais um exemplo e uma edificação?
Para mim, há uma santidade mais importante e mais inequívoca, e que não depende de nenhuma chancela, e por isso mesmo não se trivializa nem se avilta: é a demonstração evidente de virtudes heróicas, supererogatórias, na prática do bem.
Que a Madre Teresa de Calcutá tenha tido dúvidas de fé, é próprio de uma pessoa de bem para a qual se apresentam como um mistério os desígnios insondáveis da justiça que atribuímos à Divindade: este vale de lágrimas é, de um certo prisma, um sítio feio, inóspito, brutal e gritantemente injusto. Que as dúvidas a tenham acompanhado no meio da prática heróica da solicitude e da abnegação, isso só aumenta a heroicidade, e devia ser uma interpelação gritante à nossa consciência, se tivéssemos a vergonha para pensarmos seriamente no que significa vivermos num planeta que ainda deixa crianças morrerem à fome.
Tenho também as minhas reservas quanto ao que a Madre Teresa de Calcutá praticou, em especial no que respeita à sua fanática recusa de administração de cuidados paliativos aos doentes terminais (o sofrimento terminal deve ser uma questão de opção, não o fruto da insuficiência, da impotência ou do abandono, e muito menos o fruto das convicções alheias quanto ao poder paliativo da fé). Em todo o caso, se o meu testemunho valesse alguma coisa – o testemunho de um descrente, talvez temporário, na justiça de Deus, na Teodiceia –, e se dele dependesse um canonização e se desta canonização dependesse a consagração de um santo na alma das pessoas, eu poderia testemunhar que a Madre Teresa de Calcutá praticou um milagre, que foi o de ter seguido, mesmo com dúvidas, pelo caminho mais difícil e doloroso, já não necessariamente por cumprimento de uma convicção religiosa mas por simples imperativo de consciência – e tê-lo feito num mundo que recobre a sua crueldade com a alienação materialista, isto é, com a convicção de que existe alguma inevitabilidade, algum «estado natural», em haver uma parte da humanidade a viver no monturo e na sarjeta.
Há pessoas que o mundo não merece, porque são muito melhores do que ele. Acho que está nisto a pedra de toque do meu conceito secularizado de milagre e de santidade: teria sido tão mais fácil a Madre Teresa de Calcutá ter vivido na glorificação complacente do bem-estar mediano. Que ela seja canonizada, ou não, é-me totalmente indiferente, como decerto o foi, em tempo útil e enquanto ela viveu, para todos aqueles que foram directamente beneficiados pela militância da sua caridade.

3 comentários:

O Réprobo disse...

A Bondade articulada com a Fé surge-me AMPLIADA por essas mesmas dúvidas.
Ab.

Jagoz disse...

Não li ainda essas epístolas, mas do que me foi dado conhecer pela comunicação social, não acho que a Madre Teresa tenha tido "dúvidas de Fé", como lhe chama.

Jagoz disse...

«2. Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? E permaneceis longe de minhas súplicas e de meus gemidos?
3. Meu Deus, clamo de dia e não me respondeis; imploro de noite e não me atendeis.
4. Entretanto, vós habitais em vosso santuário, vós que sois a glória de Israel.
5. Nossos pais puseram sua confiança em vós, esperaram em vós e os livrastes.
6. A vós clamaram e foram salvos; confiaram em vós e não foram confundidos.
7. Eu, porém, sou um verme, não sou homem, o opróbrio de todos e a abjecção da plebe.
8. Todos os que me vêem zombam de mim; dizem, meneando a cabeça:
9. Esperou no Senhor, pois que ele o livre, que o salve, se o ama.
10. Sim, fostes vós que me tirastes das entranhas de minha mãe e, seguro, me fizestes repousar em seu seio.
11. Eu vos fui entregue desde o meu nascer, desde o ventre de minha mãe vós sois o meu Deus.
12. Não fiqueis longe de mim, pois estou atribulado; vinde para perto de mim, porque não há quem me ajude.
13. Cercam-me touros numerosos, rodeiam-me touros de Basã;
14. contra mim eles abrem suas faces, como o leão que ruge e arrebata.
15. Derramo-me como água, todos os meus ossos se desconjuntam; meu coração tornou-se como cera, e derrete-se nas minhas entranhas.
16. Minha garganta está seca qual barro cozido, pega-se no paladar a minha língua: vós me reduzistes ao pó da morte.
17. Sim, rodeia-me uma malta de cães, cerca-me um bando de malfeitores. Trespassaram minhas mãos e meus pés:
18. poderia contar todos os meus ossos. Eles me olham e me observam com alegria,
19. repartem entre si as minhas vestes, e lançam sorte sobre a minha túnica.
20. Porém, vós, Senhor, não vos afasteis de mim; ó meu auxílio, bem depressa me ajudai.
21. Livrai da espada a minha alma, e das garras dos cães a minha vida.
22. Salvai-me a mim, mísero, das faces do leão e dos chifres dos búfalos.
23. Então, anunciarei vosso nome a meus irmãos, e vos louvarei no meio da assembleia.
24. Vós que temeis o Senhor, louvai-o; vós todos, descendentes de Jacob, aclamai-o; temei-o, todos vós, estirpe de Israel,
25. porque ele não rejeitou nem desprezou a miséria do infeliz, nem dele desviou a sua face, mas o ouviu, quando lhe suplicava.
26. De vós procede o meu louvor na grande assembleia, cumprirei meus votos na presença dos que vos temem.
27. Os pobres comerão e serão saciados; louvarão o Senhor aqueles que o procuram: Vivam para sempre os nossos corações.
28. Hão de se lembrar do Senhor e a ele se converter todos os povos da terra; e diante dele se prostrarão todas as famílias das nações,
29. porque a realeza pertence ao Senhor, e ele impera sobre as nações.
30. Todos os que dormem no seio da terra o adorarão; diante dele se prostrarão os que retornam ao pó.
31. Para ele viverá a minha alma, há de servi-lo minha descendência. Ela falará do Senhor às gerações futuras e proclamará sua justiça ao povo que vai nascer: Eis o que fez o Senhor.»

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