Há equívocos na linguagem escrita que se desfariam em segundos numa conversa ao vivo, temos pois que ser pacientes com eles.
Comecemos por aí:
1. A sobranceria, real ou aparente, não me incomoda habitualmente (salvo quando me surpreendo a tê-la eu mesmo). Quando disse que estava habituado a ela não me referia ao Confrade, mas somente ao facto de trabalhar há muitos anos no local com mais egos inchados por metro quadrado de todo o Portugal, sem que isso me incomode verdadeiramente.
2. Havia reacção minha a uma percepção de sobranceria (que, se era uma percepção falsa, porque era de boa fé, decerto me será perdoada); não havia nenhum argumento ad misericordiam, que não faz nada o meu género.
3. Não vi nenhum lapso na referência a São Tomás, nem meu nem seu: não presumi que o julgasse da Alta Idade Média, pelo contrário, porque o que disse foi que o exemplo da Alta Idade Média era tão fraco que era preciso ir buscar alguém da Baixa Idade Média (no momento em que Bizâncio efectivamente entrara em declínio). Quanto à "região de Ravena", depende do sentido em que estamos a falar de região; eu referia-me à «região da Europa», nomeadamente a península itálica, e fará a justiça de imaginar que eu não colocava Aquino na freguesia, distrito ou província de Ravena. Já agora, e sem aduzir sequer argumentos da presença de São Tomás em Colónia e em Paris ou do trânsito para essas cidades, lembro-lhe que, já no século XI, o abade Desidério mandou vir decoradores bizantinos para decorar a capela da Abadia do Monte Cassino – a poucos quilómetros, desta feita, de Aquino...
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Quanto às «opiniães»:
1. Insisto que desligar a Turquia da herança cultural de Bizâncio é puramente arbitrário, e seria igualmente legítimo para desligar qualquer povo do mundo dos antecedentes históricos ocorridos no seu solo.
2. A ideia de que os turcos malbarataram a herança bizantina... bom, só podemos admitir que seja verdadeira, mas rapidamente concluiremos que, não só os turcos não foram os únicos ou principais responsáveis do processo, como também nisso os turcos estão bem acompanhados em todo o mundo. Em abono da primeira asserção, reconheçamos que a maior pilhagem de que há registo na Sancta Sophia ocorreu às mãos dos cristianíssimos cavaleiros da Quarta Cruzada, em 1204 (talvez este exemplo baste, mas poderíamos ir a muitos outros). Quanto à segunda proposição, ocorre-me a Notre Dame de Paris convertida em entreposto de vinhos, ou a europeíssima Versalhes salva in extremis pela esmola yankee (isto para não falarmos do tristíssimo e fraldiqueiro exemplo da preservação do património à portuguesa). Nisso, lamento discordar, a Turquia é, no mau sentido, muito europeia!
3. Quanto ao Direito, concordo que o ponto é demasiado técnico e árido, mas curiosamente é de certo modo respondido por uma imagem que colocou no seu blog: basta a referência às «Constitutiones» para percebermos que o sincero amor à Roma ocidental, por sincero que fosse em Constantinopla, estava já orientalizado por uma paralaxe, e que o CJC, na sua intenção de ser um «espelho» da velha prática dos jurisconsultos romanos, era já antes um espelho de tradições que extravasam do espírito do Lácio, e talvez se possam sintetizar como uma repristinação de uma velha matriz helenística-macedónica de «centralismo divinizado» que o poder dos patrícios e dos «equestres» tinha contrabalançado (com alguns lapsos, decerto), ao menos enquanto durou a Roma pagã. Mas adiante, diverjamos neste ponto.
4. Quanto ao «opinativo», digamos que, procurando ser realista, procuro não ser derrotista. Há algumas coisas de que me orgulho na civilização a que pertenço, e uma delas depende da integração, nessa civilização, da tradição bizantina-turca. Detestaria que a Turquia fosse reduzida à humilhante condição de postulante à condição de «franchisado» da «marca Europa», e, como bem observa, nesse «franchising» eu não acredito. Mas detestaria ainda mais que, por um equívoco qualquer de «pertença» ou de «identidade», contribuíssemos para fazer da Turquia uma nação anti-europeia, como decerto ela já seria se não fosse a intervenção dos Jovens Turcos e de Ataturk.
5. O Confrade multiplica os exemplos de insucessos, e eu desgraçadamente estou bem ciente deles e do seu impacto, e das vítimas que envolveram. Mas como julgo que beneficio – beneficiamos – de uma «excepção de sucesso», pese embora a consciência aguda da respectiva contingência, não posso deixar de converter a minha estima pela esplêndida civilização de que os actuais turcos são, com ou sem mérito, herdeiros, num desejo de que eles partilhem também um pouco desse sucesso, possam viver vidas de relativa liberdade, de relativa dignidade – não necessariamente como «clones» de um «franchising europeu», de uma qualquer «receita ocidental», mas como membros de uma comunidade moral que, na perspectiva que desde sempre adoptei, tem um alcance universal e não pára nas fronteiras políticas.
6. Concluo asseverando que não me perturba a consciência, que partilho decerto, de que muitos turcos são indiferentes a essa moralidade, que escarnecem dela e são insensíveis à «Regra de Ouro»; nisso os turcos não são diferentes do resto do mundo, um mundo que se embrutece e se insensibiliza progressivamente aos ditames da boa consciência moral. Só que isso não pode ser, para o meu entendimento acerca do que seja o «bom combate» moral, um pretexto para desânimos, para derrotismos ou para abandonos, e bem o contrário – pois senão resta fecharmo-nos nos nossos casulos e atordoarmo-nos com ladainhas de relativismo cultural.
7. Se há alguma «superioridade» nalgum recanto do legado cultural que eu partilho, e que remotamente associaria a um lado bom de uma acepção de «Europa», é essa convicção de que existe um «bom combate», e que é possível ao menos resgatar algumas populações mais ameaçadas de caírem no mais profundo e abjecto abismo moral. Acrescento, por curiosidade, que associo sempre esta ideia do «bom combate», muito naturalmente, ao Apóstolo dos Gentios, São Paulo (e em especial à sua 2ª Carta a Timóteo 4:7), ou seja... Saulo de Tarso, um Turco.
1 comentário:
«A sobranceria, real ou aparente, não me incomoda habitualmente (salvo quando me surpreendo a tê-la eu mesmo)»
Deve ser horrível viver em permanente sobressalto.
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