O novo Ashram minimalista

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Ainda sobre as touradas: o problema da compaixão selectiva

No seu excelente livro sobre os "executores voluntários", Daniel Goldhagen refere, no início do Cap. VIII, o caso do Major Trapp, do Batalhão de Polícia 101 (o original verídico e documentado para alguns dos mais atrozes episódios recriados nas Bienveillantes, de Littell), que, tendo já averbado mais de vinte mil mortos na sua orgulhosa Judenjagd (sem poupar sequer as crianças), um dia chora por ter que executar, em represálias, alguns reféns polacos não-judeus.
Tinha sido condicionado a desumanizar os judeus, que para ele e para os seus homens eram portanto caça livre. Não tinha sido condicionado da mesma forma para as populações não-judias dos países ocupados, pelo que a ordem de fuzilamento mexia profundamente com os seus sentimentos.
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Sem muita ênfase, Goldhagen classifica a situação como de "compaixão selectiva".
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Aqueles que conseguem estabelecer fronteiras nítidas no sofrimento são capazes das piores brutalidades tanto para lá como para cá dessas fronteiras: é uma advertência que surge nítida, por exemplo, já em Marco Túlio Cícero, e que Immanuel Kant celebrizou com a ideia de "deveres indirectos" para com os animais não-humanos. A nossa moralidade, ou se quisermos a nossa "humanidade", afere-se pelo modo como a nossa compaixão se espraia até aos confins do sofrimento, sem estabelecer demarcações. Aquele que assiste com deleite a uma tourada, aquele que não se condói com a fome de um cão, aquele que não se revolta contra a pancadaria com que se "mói" a "teimosia" de um burro – está já a demonstrar, por muito pouco que tenha a consciência disso, a sua capacidade de compaixão selectiva, a sua capacidade para se insensibilizar a formas nítidas de sofrimento.
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Aqui alinho sem hesitar com Immanuel Kant: nada há a impedir que esses que demonstram compaixão selectiva para com os não-humanos o façam também com os humanos – porque é sempre e em todos os casos de sofrimento, de um contínuo de sofrimento, que se trata.
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Só por condicionamento cultural (suprema perversão) isso pode acontecer. Uns chamam em seu apoio a tradição, e julgam que a tradição é um bom argumento. Pois foi também por apelo a uma tradição, de "pureza de raça", incessantemente reiterada, inculcada nos espíritos, glorificada e mitificada, que se iniciou o processo que culminou, em Outubro de 1942, em Kock, a norte de Lublin, na Polónia, com as angústias selectivas do Major Trapp e dos esbirros do Batalhão de Polícia 101.

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