Conheci um tipo que se comovia lendo as cartas atribuídas aos últimos resistentes de Estalinegrado.
Um dia dei-lhe a ler alguns textos que provavam que todas essas cartas eram apócrifas, sem excepção.
Depois invoquei juízos de plausibilidade – como haveria a censura da correspondência de deixar passar esses desesperantes veículos de derrotismo? E como é que, nas condições animalescas dos últimos dias do Kessel haveriam os sobreviventes de dispersar as energias em comunicações que disputariam obviamente espaço e tempo com a evacuação de feridos? E os textos continham relatos de que o pouco que havia fora destruído ou abandonado (uma pilha de papéis carbonizados em holocausto no Mamayev Kurgan). As famosas cartas tinham sido forjadas nos anos 50.
A certa altura ele encolheu os ombros e, com aquela resignação dos crentes no sudário de Turim, confessou-me estar velho de mais para mudar as suas crenças.
Na altura achei aquilo de uma estupidez extrema, mas desde então tenho-me interrogado se não é exactamente isso que fazemos de cada vez que pensamos na História e nos referimos à História – não o relato "wie es eigentlich gewesen", mas uma colagem de crenças que nenhuma plausibilidade vem policiar. A História é o registo diacrónico daquilo em que queremos acreditar, tenha acontecido ou não; e, pensando melhor, o mesmo faz, à nossa memória, o mitómano que habita em cada um de nós e que procede à radical triagem das nossas reminiscências.
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