Como a viagem era de dia, vinha com muito ânimo para terminar a semi-autobiografia de John Richardson. Quando, ao fim de uma sequência de intermináveis e assustadoras peripécias, me recostei na cadeira, ainda resisti uma hora e pouco, o tempo de comer qualquer coisa de pequeno-almoço. Depois puxei a poltrona quase até à horizontal (privilégios da primeira fila) e não resisti. Uma semana de tensão reprimida num ambiente inseguro e hostil tinha provocado a sua erosão.
Até chegar a hora do almoço seguiram-se intermitências algo alucinatórias, uns solavancos da turbulência, uns anúncios no intercomunicador, umas espreitadelas para as nuvens acasteladas sob um azul impossível, e nos auscultadores o canal "smooth jazz" da TAP repetindo, de hora a hora, a mesma sequência relaxante, culminando sempre nos Acoustic Alchemy.
Reabri Richardson e passei molemente pela descrição da sabedoria zen de Georges Braque; simpatizei e perdoei-lhe o cubismo.
A gente envelhece, nunca me tinha acontecido esta rendição tão carnal às alegrias de voltar a casa, à segurança do lar. Nada que contenha conotações morais, apenas um torpor bovino, um baixar de guarda, aquilo em que suspeito que consista a beatitude.
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