O novo Ashram minimalista

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A minha geração e a Pátria dos Fretes

O Confrade Combustões volta à carga (AQUI) com o tema da degenerescência geracional / nacional.
Tem razões para o seu desânimo, e não os esconde.
Eu subscrevo boa parte do que diz, mas, por razões minhas, não sou tão pessimista – seja eu, ou não, menos lúcido por isso.
Pelo menos em duas coisas estamos de acordo:
a) Portugal é um país que denota ainda a sua atávica vocação marítima através da singular persistência, e prevalência, do frete. Somos o país do frete, tudo se compra e vende através de fretes, e o frete é a moeda de troca com a qual é possível adquirir-se uma nesguinha de Sol nesta caverna troglodita. Ai daquele desgraçado que rejeita a prática do frete, que não venera o frete, que não avalia o frete, que não se presta ao frete – passa a intocável, dentro da hierática ordenação de castas que ainda é a coluna vertebral deste país de embarcadiços recurvos que aprenderam a amesquinhar-se para se furtarem ao embarque.
b) Habituados que estamos à venalidade e à subserviência, somos de um entusiasmo pueril na veneração daqueles que, com mais currículo na carreira do frete, se alçaram à proeminência e agora reclamam, dos demais, a mesma prontidão mercenária com que, no decurso de vidas inteiras, lograram entortar irreversivelmente o cachaço. Por conveniência, agrupámo-los todos em partidos, e é raro vermos à deriva, por conta própria, algum desses factotums glorificados (tomá-lo-íamos por órfãos, por candidatos inadvertidos ao ostracismo, ou então por «liberais», que é sinónimo de «gente mal paga pelos fretes que fez»).
Como eu e o Confrade Combustões pertencemos à mesma geração, sinto-me autorizado a discordar da ideia de que sejamos uma geração condenada, maldita ou perdida. Melhor, que estejamos, em termos axiológicos, acima ou abaixo das que imediatamente nos precederam ou das que nos seguem. Somos fideicomissários de uma nação que deixou de se respeitar precisamente há 200 anos, e que desde então procura digerir em auto-comiseração essa constatação indigesta de que abandonou, talvez para toda a eternidade, o palco da história e aquelas migalhas de protagonismo cultural que lhe cabiam quando a Europa era o umbigo do mundo.
A nossa geração embriagou-se a fazer malha e despertou tarde de mais – se é que despertou – da sua suma irrelevância, insignificância, errância, improdutividade, descaracterização? Se o fez é porque não saiu das baias que lhe foram indicadas pelas gerações precedentes, que julgaram entrever uma promessazinha de Sol se se fizesse o frete colectivo de se abandonar o Ultramar e de se genuflectir diante da cornucópia virtual da Europa, fossem quais fossem as consequências ou as facturas para os que viessem a seguir. Nessas estreitas baias relinchamos e escoiceamos desde então, e dedicamos alguns sentimentos nobres à vanglória do palito, a única que nos resta, e mesmo essa desproporcionada, que o país deixou de valer um palito.
E como condenaria eu aqueles que esgotaram o seu arsenal de fretes a troco de uma malga de caldo e agora arreganham os dentes a quem se aproxima? É a lei da vida, hobbesiana, implacável.
Pode mesmo ser que a malga esteja vazia e não haja muito a defender – mas o que distingue uma «geração» de uma «nação» é a transitoriedade, a mortalidade, da primeira das duas, e por isso o apego fútil à inautenticidade pode bem ser uma recôndita recusa da constatação, mais cruel ainda, de que, em torno da malga que dementadamente defendemos, o vazio é porventura maior do que dentro da própria malga; e que se, no plano inclinado das nossas vidas, nos aventuramos em busca de um remédio tardio, pode ser que percamos até esses dois vazios referenciais – a troco de nada, o que particularmente choca quem, habituado a fretes, sempre exige em troca qualquer coisinha.

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