O novo Ashram minimalista

domingo, 1 de novembro de 2009

António Sérgio, RIP

Soube há momentos que se extinguiu aquela que, para mim, foi a mais marcante "companhia" da rádio. Pela sua mão descobri mundos musicais fascinantes num determinado período da minha vida, e só deixei de fazê-lo quando a idade adulta reclamou que eu cristalizasse no tempo os meus gostos e referências musicais, englobando-os naquilo que cada um designa por «música do seu tempo». Ele seguiu em frente, sempre em frente, com outras gerações e tendências que, imagino, lamentarão em uníssono o António Sérgio como um dos "seus".
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À 1:28 da manhã de 14/5/2005 escrevia eu este "Noites da Rádio" no Ashram:
"Faço um intervalo nestes trabalhos nocturnos e de repente tenho um flashback aos meus tempos de adolescência, a grandes noitadas de leitura ouvindo o "Rotação" do António Sérgio na Rádio Renascença, deixando a imaginação voar na solidão meditativa do meu quarto... Lembro-me de o meu pai aparecer às vezes a meio da noite, intrigado pela luz debaixo da porta, a saber se tudo estava bem... Lembro-me de fugir a combinações com amigos – e até a "flirts" – para ficar ali lutando contra o meu sono, cavalgando os meus sonhos, remoendo os meus medos: eu, o António Sérgio, uma pilha de livros de um lado, uns sumos e umas bolachas de outro, eu viajando no Cambodja na companhia de Malraux, embalando-me nos arabescos góticos dos Cocteau Twins, as costas já doridas da posição nas almofadas, lendo para um lado (as histórias de Sven Hedin ou de Francis Younghusband), decorando subconscientemente as letras dos sucessos da New Wave, lendo para o outro lado (as proezas de Cesare Maestri no Cerro Torre, ou as desventuras de Heinrich Harrer, depois sublimemente recriadas por Brad Pitt). Que me lembre, só algumas paixões mais fortes quebraram o encantamento desta rotina, e foram as noites da tropa que a enterraram definitivamente (por muitos anos passei a detestar a solidão nocturna, lembrava-me provas topográficas entre a Murgeira e o Sonível). Penso que os alicerces poéticos da minha forma de pensar na vida se consolidaram todos ali, em momentos mais simples, mais disponíveis, mais abertos – longas noites de "curtição" egocêntrica, de abandono hedonístico a letras, a sons, a sabores benignos. Não reviveria hoje esses momentos, de medo de perder tudo o que de bom se lhes seguiu, numa qualquer das muitas bifurcações de que se compõe o passado; não me reviveria, em suma, e é agridoce este flashback, faz-me sentir tanto a distância como o orgulho, e deixa-me rever, num relance de segundos, um outro eu que, não sendo já eu, conduziu até isto que sou, e por isso se encontra embebido em mim, algures numa gaveta profunda na qual ressoa, a horas mortas, o jingle com que se abria o "Rotação" do António Sérgio."
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São coisas a mais para se poder agradecer. És dos "meus". Fico orgulhoso da dívida.

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