O novo Ashram minimalista

domingo, 27 de julho de 2008

Varela v. Caetano: papéis trocados

No outro dia recordava, com um colega, os tempos em que tínhamos privado com Antunes Varela, tempos inesquecíveis. Para mim, que tinha nascido e crescido no meio de referências admirativas ao Doutor Varela, era a realização de um sonho que até então se afigurara improvável. Ele já me conhecia de nome antes de me conhecer pessoalmente, e talvez por isso tenha sido desde o início de uma afabilidade enorme.
Para uns, ele vinha precedido da reputação de ser o delfim que os esturrados teriam desejado para Salazar; para outros, e nestes eu me incluía, ele era o principal maestro do mais importante e melhor documento jurídico elaborado em Portugal no século XX (um mérito que uma intriga mesquinha e ressabiada tem procurado negar-lhe, invocando o nome de Vaz Serra [decerto o 1º violino, não o maestro]).
Curiosamente, no registo político ele ficará conotado com a facção mais reaccionária do salazarismo, ele que no seu íntimo era profundamente liberal, tolerante, e radicalmente apolítico – como talvez só o consigam ser os leopardos mais ferozmente individualistas. E será perpetuamente contraposto ao «primaverista» Marcelo Caetano, na verdade o mais intolerante e rígido condutor de capelinhas fanatizadas e aduladoras, o mais fascizante idólatra de fardas e ordens unidas, o mais rígido e rebarbativo jurista que Portugal gerou ao longo de um século. Ironias do destino, provando que o homem é antes de mais o fruto das suas circunstâncias, que por «astúcia da razão» convertem a imagem de cada um no inverso daquilo que ele é.
Uma ironia que prova também o que impera neste pobre país: Varela, no fulgor da sua inteligência, na extensão dos seus conhecimentos, na fertilidade das suas construções, não teve discípulos que verdadeiramente o acompanhassem; Caetano, um rígido esterilizador de consciências, tem por aí um infindável batalhão de discípulos, alguns bizarramente clonados com o ADN lusito.
Talvez só não aconteça assim com aqueles que, como eu, tiveram a sorte imensa de ainda conhecer a figura de homem e de intelectual, a última geração privilegiada com esse contacto. Pena que da minha geração não surjam mais testemunhos a tentarem emendar essa injustiça que o esquecimento (esse grande motor da historiografia) acabará decerto por consumar. Imagino que, modesto e individualista até ao fim, ele fosse o último a importar-se com esse esquecimento.

1 comentário:

Unknown disse...

Um justíssimo elogio. Grande homem, grande obra. (Teimo em dar aos códigos anotados o seu lugar de honra nas minhas estantes, embora as minhas incursões no CC já tivessem nascido quando o sistema (?) se tornou num verdadeiro 'patchwork').
E é verdade, sim: - por norma os académicos que não deixam escola são os narcísicos empedernidos, que nao admitem sombra e apenas distinguem´(e cultivam...) um bando de bajuladores, incapazes de continuar e multiplicar o património científico a que tiveram acesso privilegiado...
No caso de Antunes Varela (e talvez de outros) a herança ter-se-á dissipado estranhamente, apesar da sua generosidade e grandeza humana.
Quanto a mim, arriscando a opinião de quem lembra apenas, e nebulosamente, a pessoa e a sua aura privada num pequeno burgo de tradições intelectuais, essa injustiça histórica fica a dever-se à combinação de duas coisas:
- a sua marca genética coimbrã (por muito que a desprezem, tomaram muitos tê-la, ou no mínimo compreendê-la...)
- a sua cedência pródiga à tentação da incursão na vida política, que o exilou para longe do seu terreno fértil.
(Não pode haver frutos quando a planta corta as suas raízes :)

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