Foi-me colocada uma interrogação: que reservas são essas quanto às motivações e carácter de Aristides Sousa Mendes? Não vou entrar no detalhe, até porque se trata mais de dúvidas do que de certezas. Foram dúvidas colocadas por pessoas que se referiram ao caso desapaixonadamente e que, pelo que sei, tiveram acesso a dados ainda não totalmente divulgados. Não foram as dúvidas que já nos habituámos a ver formuladas pelas mexeriqueiras do Palácio das Necessidades (onde impera a má consciência face a esse e a outros episódios) e pela clique pró-nazi e anti-semita que bolsa sobre o cônsul os seus velhos ódios. Não, foram dúvidas suscitadas por pessoas que, aparentemente, não tinham nenhuma «agenda ideológica» nem nenhum «aleijão moral» face ao caso.
Em todo o caso, as reservas não diminuem o gesto, antes o aumentam – segundo o meu entendimento do que é a moral cristã.
Na falácia romântica, vertida na «moral da virtude», só uma pessoa infinitamente virtuosa e heróica, supererogatória nas suas intenções e gestos, seria digna de louvor (aquela devoção infantil e infantilizadora por «ícones» imaculados).
Na moral cristã, aquela mesma que eu vejo espelhada nos próprios Evangelhos, a redenção chega aos grandes pecadores, e pode chegar até ao último momento, às vezes por um único gesto, às vezes até por um mero arrependimento.
Ora essa é a moral que me interessa para avaliar o gesto, porque houve vidas que foram salvas – desde o mais humilde judeu que fugia do destino que lhe era prometido, até a Otão de Habsburgo que fugia da guerra.
Os cônsules que salvaram vidas durante a 2ª Guerra eram grandes pecadores, gente venal, desprezível nalgumas motivações, mesquinha nas suas vidas privadas? Alguns sim, decerto; uns mais, outros menos, como cada um de nós.
O que importa é que, para lá desses traços de personalidade, eles salvaram, ou ajudaram a salvar, vidas – enquanto uma multidão de outros funcionários diplomáticos e consulares, atordoados na auto-gratificação das suas virtudes ou entrincheirados nas conveniências do legalismo e dos deveres de obediência, assistiram sem um gesto aos afogamentos. Gente virtuosa? Alguns sim, decerto; uns mais, outros menos, como cada um de nós. Gente virtuosa que, como nós, é capaz de cometer um pecado terrível que compromete a redenção.
O Criador há-de ter contabilizado cada vida salva – em desconto dos pecados de Giorgio Perlasca, Sempo Sugihara, Georg Ferdinand Duckwitz, Sousa Mendes, Louis Haefliger, ou Friedrich Born. A «ética da virtude» condená-los-á, ao menos a alguns – mas quando há vidas em risco não é a essa ética que a fé cristã manda recorrer, mas apenas àquela que atende aos resultados, aos «frutos da árvore» (entender de outro modo seria insinuar que o Criador é subtilmente, e maliciosamente, um Grande Destruidor, coisa que não concebo).
Admiro – confesso – mais aqueles germânicos que, correndo muito maiores riscos do que os cônsules, puseram também as suas miseráveis condições de pecadores ao serviço do salvamento de vidas: Hugo Armann, Anton Schmid, Eberhard Helmrich, Donata Helmrich, Roman Erich Petsche, Oskar Schindler, Max Schmeling (sim, o campeão de boxe), Maria von Maltzan.
Qualquer destes nomes – e há, felizmente, tantos outros – é por si só um depoimento eloquente, dramático, contra a moralidade daqueles que ficaram aquém do que poderiam ter feito, independentemente do que criam ou sentiam à época, por medo, por conveniência, por desumanidade, por alienação.
Não há dúvidas ou reservas que se sobreponham a esta constatação básica: são pecadores, sempre pecadores, aqueles que salvam vidas. Se o não fossem esse salvamento não tinha qualquer significado redentor.
Sei bem que isto pode não fazer qualquer sentido para quem não perfilhe uma moral cristã. Para mim faz sentido bastante; faz todo o sentido.
Em todo o caso, as reservas não diminuem o gesto, antes o aumentam – segundo o meu entendimento do que é a moral cristã.
Na falácia romântica, vertida na «moral da virtude», só uma pessoa infinitamente virtuosa e heróica, supererogatória nas suas intenções e gestos, seria digna de louvor (aquela devoção infantil e infantilizadora por «ícones» imaculados).
Na moral cristã, aquela mesma que eu vejo espelhada nos próprios Evangelhos, a redenção chega aos grandes pecadores, e pode chegar até ao último momento, às vezes por um único gesto, às vezes até por um mero arrependimento.
Ora essa é a moral que me interessa para avaliar o gesto, porque houve vidas que foram salvas – desde o mais humilde judeu que fugia do destino que lhe era prometido, até a Otão de Habsburgo que fugia da guerra.
Os cônsules que salvaram vidas durante a 2ª Guerra eram grandes pecadores, gente venal, desprezível nalgumas motivações, mesquinha nas suas vidas privadas? Alguns sim, decerto; uns mais, outros menos, como cada um de nós.
O que importa é que, para lá desses traços de personalidade, eles salvaram, ou ajudaram a salvar, vidas – enquanto uma multidão de outros funcionários diplomáticos e consulares, atordoados na auto-gratificação das suas virtudes ou entrincheirados nas conveniências do legalismo e dos deveres de obediência, assistiram sem um gesto aos afogamentos. Gente virtuosa? Alguns sim, decerto; uns mais, outros menos, como cada um de nós. Gente virtuosa que, como nós, é capaz de cometer um pecado terrível que compromete a redenção.
O Criador há-de ter contabilizado cada vida salva – em desconto dos pecados de Giorgio Perlasca, Sempo Sugihara, Georg Ferdinand Duckwitz, Sousa Mendes, Louis Haefliger, ou Friedrich Born. A «ética da virtude» condená-los-á, ao menos a alguns – mas quando há vidas em risco não é a essa ética que a fé cristã manda recorrer, mas apenas àquela que atende aos resultados, aos «frutos da árvore» (entender de outro modo seria insinuar que o Criador é subtilmente, e maliciosamente, um Grande Destruidor, coisa que não concebo).
Admiro – confesso – mais aqueles germânicos que, correndo muito maiores riscos do que os cônsules, puseram também as suas miseráveis condições de pecadores ao serviço do salvamento de vidas: Hugo Armann, Anton Schmid, Eberhard Helmrich, Donata Helmrich, Roman Erich Petsche, Oskar Schindler, Max Schmeling (sim, o campeão de boxe), Maria von Maltzan.
Qualquer destes nomes – e há, felizmente, tantos outros – é por si só um depoimento eloquente, dramático, contra a moralidade daqueles que ficaram aquém do que poderiam ter feito, independentemente do que criam ou sentiam à época, por medo, por conveniência, por desumanidade, por alienação.
Não há dúvidas ou reservas que se sobreponham a esta constatação básica: são pecadores, sempre pecadores, aqueles que salvam vidas. Se o não fossem esse salvamento não tinha qualquer significado redentor.
Sei bem que isto pode não fazer qualquer sentido para quem não perfilhe uma moral cristã. Para mim faz sentido bastante; faz todo o sentido.
2 comentários:
Hummmm, gostei do raciocínio.
Este tema foi para mim pacífico durante relativamente pouco tempo.
As minhas impressões mais persistentes:
-Sempre me pareceu grandioso o que ASM fez.
-Sempre achei desproporcionada a reacção de Salazar, na medida em que alegadamente responderia ao episódio vistos de Bordéus. Não pela minha fé na benigna natureza do Presidente do Conselho. Mas mais pelo atípico da definitividade nas decisões, monolíticas, sem nenhum esquema mitigador (embora eu perceba que o pior que ASM fez foi insistir, insistir, insistir na denúncia da injustiça de que era alvo...)
Depois, anos mais tarde, foi uma conversa fortuita com algum do 'inner circle' da família e conhecidos de ASM que de repente "me" trouxe luz sobre algumas facetas menos iluminadas do fenómeno.
E descubro que o mito tem pés de barro muito feios.
Descubro que o senhor de Vimioso não foi o único a atentar contra a desgraça familiar (verdadeiramente a 'condenação' que mais me tocava).
E assim chego, por fim, à conclusão que a culpa é de quem tem a mania dos Heróis. E compõe as histórias.
Não deviam.
Sem excessivas apologias, continuo pragmaticamente rendida ao gigantesco alcance da atitude de SM.
É certo que não são os resultados que qualificam os actos (contra a "GPO", isto só faz sentido para a tal moral cristã que eu tb. perfilho).
Não se trata disso.
Trata-se de (des)equilíbrio e (des)medida.
- Afinal, o que eram os pés grosseiros de barro barato do aristocrático ASM perante o horror da desumanidade nazi?
(sorrisos tristes :):(
Deus não se revela necessariamente através de heroicidades impolutas.
Ainda bem:)
É, um dos principais problemas é a da infantil historiografia hagiográfica, que tudo compõe em termos de anjos e demónios - quando a história humana navega invariavelmente pelo espectro intermédio, e regista sobretudo gestos admiráveis de gente pouco admirável.
As crianças (seja qual for a idade que têm) não se contentam com o quadro não-maniqueísta.
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