Quando acontece ter tempo de sobra para ir do ponto A ao ponto B (normalmente a rotina, para impedir que nos tornemos uns contemplativos indolentes, incute-nos um sentido de urgência que tem por único efeito prático agitar-nos e turvar-nos o discernimento), quando acontece ter a oportunidade de passear calmamente, dizia, tenho a tendência para andar de nariz no ar, como um perdigueiro. À procura de quê – de caça? Não, em busca dos mais indeléveis, mas mais recônditos, traços da memória de uma outra Lisboa, a Lisboa que cheirava.
A que cheirava mal mas a que cheirava bem, as duas numa: aquela em que não predominava o saneamento básico, nem a máquina de lavar, nem o hábito do banho diário; mas também aquela em que o cheiro a carburante, a óleo queimado e a sopa de couve era vencido pelo cheiro de hortaliça fresca e de fruta madura e de terra molhada quando chovia. Claro que não tenho saudades da Lisboa que tresandava; mas confesso que, no meu saudosismo primitivista, não conseguiria ter saudades da Lisboa que cheirava a mosto, a pão fresco e a maresia se não fosse pelo contraste com os outros cheiros e pela variedade de estímulos nessa dialéctica maniqueísta do olfacto.
Hoje talvez uma norma importada qualificasse tudo isso como poluição – e muito justamente. Na verdade, penso eu, deslocando-me agora mais apressadamente do ponto B para o ponto C, tudo isto não passa do efeito «paraíso perdido»: as coisas que temos por paradisíacas só porque as perdemos. Não é dos cheiros que eu tenho saudades, é do miúdo que os sentia mas não os apreciava porque não podia adivinhar que eles iriam desaparecer sem aviso.
A que cheirava mal mas a que cheirava bem, as duas numa: aquela em que não predominava o saneamento básico, nem a máquina de lavar, nem o hábito do banho diário; mas também aquela em que o cheiro a carburante, a óleo queimado e a sopa de couve era vencido pelo cheiro de hortaliça fresca e de fruta madura e de terra molhada quando chovia. Claro que não tenho saudades da Lisboa que tresandava; mas confesso que, no meu saudosismo primitivista, não conseguiria ter saudades da Lisboa que cheirava a mosto, a pão fresco e a maresia se não fosse pelo contraste com os outros cheiros e pela variedade de estímulos nessa dialéctica maniqueísta do olfacto.
Hoje talvez uma norma importada qualificasse tudo isso como poluição – e muito justamente. Na verdade, penso eu, deslocando-me agora mais apressadamente do ponto B para o ponto C, tudo isto não passa do efeito «paraíso perdido»: as coisas que temos por paradisíacas só porque as perdemos. Não é dos cheiros que eu tenho saudades, é do miúdo que os sentia mas não os apreciava porque não podia adivinhar que eles iriam desaparecer sem aviso.
3 comentários:
Excelente.
Compreendo perfeitamente o que diz e sinto-o muito quando penso e passeio também na minha "outra" cidade, noutras latitudes. Aquilo tudo não era certamente maravilhoso - ainda que algumas coisas o fossem com certeza - mas era maravilhoso estar ali com dez ou doze anos e descobrir aquela cidade com inteira liberdade. Agora, à medida que o tempo passa, dou por mim muitas vezes não com saudade das coisas que passaram e às quais não dei valor mas com saudade antecipada das coisas ou pessoas a que dou valor e sei que vou perder. Isto está melancólico mas a culpa é sua...
minimalista só se for por modéstia. Cumpts.
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