Dava a letra de um blues, ou de uma música country: já percorri muitos caminhos, já vi muitas coisas no mundo, mas nunca passei por coisas tão estranhas como aqui.
Este é o lado de Mafra que poucos conhecem, o lado dos frades onde, exaustos, formam os recrutas depois de noites muito curtas, depois de um duche gelado, de um «Nesquick azeiteiro» (como lhe chamavam os trengos do norte), de uma corrida a buscar a G3 e o bombocas (o capacete) e de longos minutos entre a berraria e os palavrões dos alferes Rangers, no meio de cheiro a corpos, a óleo fino (da «iarma», como diziam os morcões), a lama ressequida e a creolina, esperando a nova tortura: GAM na estrada da Ericeira? treino de arremesso de granadas defensivas na carreira de tiro? o Vale Escuro? o Tanque dos Frades? mais praxes sádicas? mais humilhações?
Já faz longos anos que deixei de ter pesadelos que incluíam especificamente o corredor de Lacouture. Lembrei-me dele porque há um ano um dos poucos camaradas que nos mantinha o moral foi levado prematuramente deste mundo.
Dei agora de caras com a fotografia, uma fotografia que sugere repouso e silêncio, por ironia. Falta-lhe o "clic, clic, clic" do emblema dos Comandos batendo no botão de um capitão sádico, arrastando atrás dele uma companhia em passo de corrida, aparentemente as 24 horas do dia; falta-lhe os berros de "50 de braços!" disparados pelos alferes frustrados de saírem de Lamego para acabarem na instrução da «tropa macaca»; falta-lhe o «granel», o «arranhanço», a implacável e imparável lógica da caserna.
Devo estar a ficar muito velho: consigo reconstituir tudo isso e já não sinto um único calafrio. Mais ainda, confesso que gostava de voltar ao local – desde que primeiro tirassem de lá a tropa.
Este é o lado de Mafra que poucos conhecem, o lado dos frades onde, exaustos, formam os recrutas depois de noites muito curtas, depois de um duche gelado, de um «Nesquick azeiteiro» (como lhe chamavam os trengos do norte), de uma corrida a buscar a G3 e o bombocas (o capacete) e de longos minutos entre a berraria e os palavrões dos alferes Rangers, no meio de cheiro a corpos, a óleo fino (da «iarma», como diziam os morcões), a lama ressequida e a creolina, esperando a nova tortura: GAM na estrada da Ericeira? treino de arremesso de granadas defensivas na carreira de tiro? o Vale Escuro? o Tanque dos Frades? mais praxes sádicas? mais humilhações?
Já faz longos anos que deixei de ter pesadelos que incluíam especificamente o corredor de Lacouture. Lembrei-me dele porque há um ano um dos poucos camaradas que nos mantinha o moral foi levado prematuramente deste mundo.
Dei agora de caras com a fotografia, uma fotografia que sugere repouso e silêncio, por ironia. Falta-lhe o "clic, clic, clic" do emblema dos Comandos batendo no botão de um capitão sádico, arrastando atrás dele uma companhia em passo de corrida, aparentemente as 24 horas do dia; falta-lhe os berros de "50 de braços!" disparados pelos alferes frustrados de saírem de Lamego para acabarem na instrução da «tropa macaca»; falta-lhe o «granel», o «arranhanço», a implacável e imparável lógica da caserna.
Devo estar a ficar muito velho: consigo reconstituir tudo isso e já não sinto um único calafrio. Mais ainda, confesso que gostava de voltar ao local – desde que primeiro tirassem de lá a tropa.
4 comentários:
Ao ler o seu belo texto e ao olhar para este infindável corredor, ocorreu-me uma ideia absurda: os recrutas deviam poder usar patins, em Mafra. Seria lógico, ou não?
Tanto azedume (escárnio? desprezo? sobranceria?) contra os nortenhos...
Azedume nenhum, seria atentar contra as minhas próprias raizes, 100% nortenhas. As referências são feitas com aquela familiaridade indelicada com que se tratam os verdadeiros camaradas (sofremos muito lado a lado...).
Honra-me além do concebível com a mercê do seu retrucar.
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