O novo Ashram minimalista

terça-feira, 8 de abril de 2008

Exorcismo

Acordo com um cateter espetado no peito, e os olhos caem molemente. Uma voz suave diz-me: "tem indicação de morfina, quer tomar já?". Aceno com a mão que não, e começo a transpirar mais abundantemente. "Chame a qualquer momento, de qualquer modo aquilo actua muito depressa". Onde é que eu vim parar? Não era suposto haver estas complicações, toda a gente me tinha tranquilizado. Uma dor intensa irradia do umbigo, como se tivessem apagado nele um charuto gigante, e eu distraio-me com uma dobra do lençol que está a magoar-me a omoplata. Não consigo mexer-me e desfazer a prega no lençol, torna-se uma obsessão, distrai-me do lento tsunami que avança para o peito. Será que ainda respiro daqui a dez segundos? Tomo consciência da minha própria respiração, de como é curta, e começa a latejar o pensamento sombrio de que vou passar o resto da noite a um milímetro de chamar a enfermeira e capitular à morfina. Não pára de entrar gente no quarto, a pendurar coisas, a espetar-me coisas: "esta vai doer-lhe, é na barriga, é um anti-coagulante para evitar tromboses" (mas não era suposto promover-se a coagulação?, cogito) "este ardor na mão é uma nova perfusão de analgésicos" "o anti-emético não deu resultado?" "se não se despacha temos que algaliá-lo!" (e eu em pânico lá me «despacho», não sei com que forças). Os meus olhos transformam-se nos de um camaleão, ganham vida independente e deixo de conseguir focar coisas, o que não ajuda às náuseas. A dor aumenta ainda. Soergo a cama articulada e, como por milagre, respiro melhor e a prega do lençol nas costas desfaz-se. No corredor, não sei a que horas da madrugada, discute-se a chuva. Concentro todas as energias para beber um gole de água sem verter o copo. Sinto uma dor intensa do lado esquerdo – será que é o coração que está a falhar... – sozinho, no silêncio, no escuro, fico mais mórbido do que nunca. Vivo para os próximos segundos e isso evita que chore, tento adivinhar o mais leve indício de melhoria. Nada de intelectual em mim me socorre, estou abandonado à minha animalidade. Viro o pescoço para o lado direito, buscando o contacto com a almofada. Desligo.
De manhã passa o cirurgião a visitar-me: "mas você está óptimo, meu caro, e não se esqueça do livro que me prometeu!". O que é que eu prometi? Quando? Olho e da janela vejo a chuva, que me molhará daqui a umas horas. Os olhos, preguiçosos, divagam ainda, e não consigo ver televisão, nem ler, nem sorrir. E no entanto cá dentro, como se duas grossas lágrimas de alívio rolassem para o interior das órbitas, sinto a dor diminuir e percebo que desta já me safei, e que afinal não custou tanto, só uma noite no inferno.

8 comentários:

Tristão Velasco disse...

No blogue ao menos, continua em forma. Um abraço.

T disse...

verdadeiro ou falso....?

margarida disse...

Isto parece-me dolorosamente autobiográfico e "explica" a ausência entre dia seis e hoje...
Compreendo benissimamente as sensações - anos que sejam, não levam a memória dos dias de hospitalização - e envio um abraço solidário.
... hum, não, envio mesmo é um grande xi-coração!
Bem tornado e "keep up the good spirit"!

margarida disse...

E não é que a B.I. já o 'abraçou' ontem?!
Posso alegar que (também) ando adoentada e me atrasei na visita devido ao estado febril, mas não satisfará nenhuma das partes.

Sempiterna questão, a ler com a exacta reverência e o justo pudor que a origina: "quid tu hominis es?"

Envio girassóis.
Um maço deles, maiores do que o astro-rei; resistentes e inspiradores.
Porque aos cavalheiros também é legítimo oferecerem-se flores.

margarida disse...

"No news is good news"

But the truth is that good news would be some news...
...
"And how are you feeling today?", she asked, with a smile.

Jansenista disse...

Infelizmente é verdade, estou melhor, obrigado pelos votos.

Bic Laranja disse...

Andei ausente e penitencio-me por só o visitar agora. A coisa vai pelo melhor agora e a escrita demonstra-o, embora seja algo penoso lê-lo nesta.
Estimo as melhoras.

O Réprobo disse...

Meu Caro Jansenista,
e eu a pensar que era tudo literatura!
Grande abraço e votos de rápido regresso à normalidade.

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