O novo Ashram minimalista

quinta-feira, 27 de março de 2008

No-fault divorce? Uma ideia perversa se houver filhos (menores), boa se não houver

1. Qualquer pessoa que conheça os dramas reais e encenados que tradicionalmente acompanharam os divórcios litigiosos – tantas vezes com a mobilização de amigos e familiares, a mentirem descaradamente em apoio de miríficas alegações de «culpa» de um dos cônjuges, e não menos fantasiosos protestos de «inocência» do outro – só pode acolher favoravelmente as propostas no sentido de ao menos se abrandar as exigências desse pressuposto da «culpa». Para desgraça, já basta a própria situação do divórcio, não é preciso subir a parada e convertê-lo no pretexto para uma guerra civil com danos colaterais tão extensos.
2. Eu só não admitiria um abrandamento de requisitos em casos em que houvesse filhos menores, pela simples razão de que eles são sempre vítimas, em qualquer forma de divórcio.
3. Quanto ao resto, tudo está em os tribunais acautelarem devidamente os interesses patrimoniais dos divorciados, evitando que o «divórcio sem culpa» se converta num pretexto para o abandono de um cônjuge economicamente dependente ou, inversamente, para o proverbial «golpe do baú». No fim, o resultado pode ser exactamente o mesmo que hoje se alcança – em puros termos práticos.
4. Não havendo filhos menores – insisto – quando se chega ao divórcio já há duas vítimas, e nada justifica submetê-las ao circo e à humilhação da busca de «culpas» na mais cruel devassa da sua intimidade que conceber se pode, por sobre as ruínas de um amor que se presume ter existido. É uma expiação inútil, selvática, ferina.
5. Já sei que todo o moralão que se preza lamentará mais esta evolução: há sempre quem ache que o casamento é para ser mantido a qualquer preço, para lá de todos os limiares de crueldade e de violência, para lá de todas as práticas de infidelidade e de aviltamento da instituição; e muitos ficam assustados com o direito potestativo que o «no-fault divorce» vem colocar nas mãos de qualquer dos cônjuges, libertando cada um deles da inqualificável chantagem que, a pretexto da ausência de «culpa» real, o outro cônjuge pode ainda hoje exercer.
6. Por mim, detestaria ver essa modalidade que se anuncia ser aplicada a casais com filhos menores, e nunca posso deixar de lamentar profundamente o que leva as pessoas a divorciarem-se. Mas como não gosto de moralidades estatísticas e cosméticas e já assisti demasiadas vezes ao lado podre da questão – por mim chega dessa palhaçada do «cônjuge culpado».

2 comentários:

O Réprobo disse...

O problema, Caro Jans, é que todos esses limiares de crueldade e violência deixam agora de ter um autor a que se aponte o dedo, passam a surgir de geração espntânea, do ar, talvez. A diluição nos dois outra coisa não é.
Abraço, deste moralão que se preza

João Manuel Vicente disse...

Concordo consigo. Se, a par do afecto, foi afinal uma vontade livre que esteve subjacente à celebração do casamento, por que razão se deve exigir a todo o transe a manutenção, pelo menos por três anos (prazo actual para o divórcio fundado na falta de coabitação), que quem - à revelia de qualquer comportamento censurável do outro cônjuge - deixou de sentir tal afecto e deixou de se manter por sua livre e espontânea vontade, não se possa de imediato desvincular..?
Parece-me que se pode adoptar aqui, com as devidas adaptações (que são, claro, muitas),a doutrina do art. 437.º do Cód.Civil, ou seja, a resolução do contrato, sem que esta seja fundada numa "justa causa" legal ou contratual, mas antes "afectiva", "existencial"..
Concordo ainda com a ressalva que faz. Com efeito, se aceito tal divórcio sem uma necessária e prévia "declaração judicial de culpa", também entendo que se a liberdade é valiosa para nós, sê-lo-á ainda mais para quem - e aqui sim, sem qualquer culpa sua - houver de sofrer as consequências do exercício da nossa liberdade.
Falo naturalmente dos filhos, muito em particular quando sejam ainda menores. Quanto aos filhos, à liberdade de divórcio dos pais deve ser sempre assegurada a respectiva responsabilidade perante estes.

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