Lembro-me de, muito novinho, ter pegado no último volume de uma obra extensa na biblioteca do meu pai e, começando pelas últimas páginas – como se se tratasse de descobrir o nome do assassino no final de um livro policial –, ter topado com uma gravura de um copista e, por sobre ela, um EXPLICIT seguido de umas fórmulas, de umas invocações e de uns desabafos sob a epígrafe comum, «cólofon».
O livro estava encadernado de fresco, e tinha um cheiro intenso que se perdeu no meu olfacto atordoado por tantos anos de paperbacks. Intrigado com a expressão e com o carácter auto-referencial das fórmulas por ela designadas, pus-me a imaginar uma espécie de rebeldia final do copista, que pigarreia no término do trabalho para assinalar a sua presença, a mesma que a própria objectividade da cópia reclama que se anule.
«Sou eu, estou aqui!», visualizei-o assomando, como um marcador, entre a penúltima e a última folha, «este livro não se fez a ele mesmo, e o autor deve-me umas moedas pelo labor beneditino que conduz a este parto!». Também me lembrei de que o tipógrafo estava a fazer o mesmo: «usámos Bembo no texto, e Gill Sans Serif nos títulos, e a nossa colecção original de dingbats»; só o encadernador chegava tarde de mais, embora num canto da contracapa aparecesse a lápis a pequena fortuna em escudos que cobrara ao meu pai.
O livro estava encadernado de fresco, e tinha um cheiro intenso que se perdeu no meu olfacto atordoado por tantos anos de paperbacks. Intrigado com a expressão e com o carácter auto-referencial das fórmulas por ela designadas, pus-me a imaginar uma espécie de rebeldia final do copista, que pigarreia no término do trabalho para assinalar a sua presença, a mesma que a própria objectividade da cópia reclama que se anule.
«Sou eu, estou aqui!», visualizei-o assomando, como um marcador, entre a penúltima e a última folha, «este livro não se fez a ele mesmo, e o autor deve-me umas moedas pelo labor beneditino que conduz a este parto!». Também me lembrei de que o tipógrafo estava a fazer o mesmo: «usámos Bembo no texto, e Gill Sans Serif nos títulos, e a nossa colecção original de dingbats»; só o encadernador chegava tarde de mais, embora num canto da contracapa aparecesse a lápis a pequena fortuna em escudos que cobrara ao meu pai.
O «cólofon» era omisso quanto à acidez do papel, e em parte nenhuma apareciam as indicações técnicas que hoje abrem os livros. Peguei no livro há pouco tempo e o aspecto do papel era surpreendentemente fresco ainda, se bem que existisse uma ligeiríssima margem amarelecida nas páginas que ainda não tinham sido abertas (o que eu gostava de abrir à faca as páginas de um livro!). Achei muito prosaicas as fórmulas do cólofon e estranhei que elas me tivessem sugerido tanta coisa outrora. O livro, como é evidente, não mudou, eu é que mudei e deixei que na minha imaginação os livros se banalizassem, e que, de certo modo, na pressão das leituras cada página passasse a ocupar na minha atenção o espaço que em jovem era ocupado por cada frase, por cada linha. Talvez o próprio livro tenha mudado, perdendo um pouco o seu lado artesanal, o seu alicerce beneditino, em favor de uma torrente de escrita que tende a ser vertida directamente, em alto débito e sem provas tipográficas, de computadores. Desafiei o meu olfacto atordoado e levei o livro ao nariz, mas já não cheirava a nada. O encanto tinha-se perdido, o que corresponde a uma outra forma, mais grave porque mais subjectiva e definitiva, de os livros acabarem.
1 comentário:
E pensar que encanto de antes dos alvores tipográficos tinha levado, dos Séculos IX a XII, a integrar nos tesouros das abadias os volumes que possuíssem...
Abraço
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