O novo Ashram minimalista

segunda-feira, 24 de março de 2008

Blackboard Jungle

Soube com atraso de alguns dias do episódio de desacato liceal envolvendo uma professora, uma aluna e um telemóvel. Dei uma vista de olhos pelos comentários ao caso e concordei com quase todos – se há caso em que o sentimento de repulsa e o diagnóstico são fáceis, é este.
Contudo, atrevo-me a destoar da maioria com as seguintes notas:
- faz-me pena a figura da docente: mostra que não tem qualquer vocação para a função, ou que então foi momentaneamente acometida de uma quebra de lucidez: descer ao nível da aluna é absolutamente impensável, e mais ainda pretender medir forças com a aluna; a força, como é óbvio, não remedeia a falta de autoridade.
- a aluna entra em histeria, e por isso vejo com dificuldade que possa ter-se por inteiramente imputável, ao menos a partir do momento em que a docente admite entrar no confronto físico; é indesculpável o que fez, mas não comparemos a responsabilidade dela com a responsabilidade da docente no controle da situação.
- acho revoltante a apatia e o gozo alarve dos coleguinhas, que esses sim parecem deliciar-se numa perspectiva de impunidade verdadeiramente crapulosa.
- não vejo que o episódio seja especialmente revelador da degradação a que chegou o ensino secundário – uma degradação que é real e palpável, por inúmeros outros motivos. É que andei no ensino secundário «in illo tempore» e já havia episódios similares de «blackboard jungle», mesmo com a perspectiva de sanções infinitamente mais pesadas do que as que actualmente vigoram.
- no meu tempo já havia perigosíssimos cadastrados escolares à espreita do mais leve indício de fraqueza de um qualquer docente, e nenhuma perspectiva de perda de ano ou de expulsão os comovia ou demovia: lembro-me de uns brutamontes a vangloriarem-se, no pátio do Pedro Nunes, de terem cortado à tesourada a gravata do Prof . de Desenho, e lembro-me do ambiente de festividade geral quando apareceu um Prof. de Canto Coral que tinha, como dizer, a voz aflautada (aliás, um excelente músico, de reputação internacional).
- mas no meu tempo havia docentes que nem o mais empedernido e tatuado «freak» se atrevia a encarar, quanto mais a desrespeitar; com eles só havia cordeirinhos mansos – e era e é desses «professores-feras» que, muitas décadas passadas, continuamos a falar com orgulho, agora que os «freaks» envelheceram e já ganharam juízo. Só desses Professores é que interessa falar.
À medida que o tempo passa são cada vez mais frequentes os momentos em que, parando para meditar, lamento profundamente ter nascido neste país onde as instituições tudo nivelam pela mediocridade, onde o mérito não é ignorado apenas porque é escarnecido, onde a brutalização e a ignorância vão conquistando terreno irreversível.
Mas uma das poucas coisas que me faz não desesperar é que, no silencioso cumprimento dos seus deveres, com uma seriedade que não consente alaridos, há neste momento pais que estão a incutir nas suas crianças o respeito por alguns valores imemoriais; há neste momento crianças e jovens que ocupam o seu tempo numa demanda ascencional de excelência; há neste momento professores de genuína vocação que, contra ventos e marés, contra a transigência sistemática de pedagogos, contra a pressão demagógica de políticos e contra a chantagem dos cadastrados escolares e das famílias que os geram e glorificam – há neste momento professores que não abandonaram o seu posto e não se demitem de formar o país do futuro.

1 comentário:

dutilleul disse...

Exmo. Sr. Jansenista,

sou seu leitor e acumulo com isso a condição de ser professor. Estará perto de fazer 30 anos mas não tenho vindo a contar.

Li no seu “perfil” que a sua “indústria” é a educação. As visitas que esporadicamente aqui faço, sempre gratificantes, consentem-me a presunção de que é uma pessoa honesta. De onde, a sua “industria” será mesmo a educação. Contudo, para mim é bastante obvio que o não é no âmbito do “ensino básico” (denominação eleita pelo Ministério da Educação.). E não, a aluna a que alude no seu post não é do “secundário” onde o ensino, a esta data, não é obrigatório.

Deste modo, consinta-me dois ou três comentários sobre duas ou três passagens do seu texto.

1 - “… a figura da docente: mostra que não tem qualquer vocação para a função, ou que então foi momentaneamente acometida de uma quebra de lucidez.”

Sem a pretensão de lhe escavacar a dúvida, estou disposto a jurar que a docente “foi momentaneamente acometida de uma quebra de lucidez”. O que indicia que tem vocação para a função; os mercenários do ensino (e em 143000 ainda há muitos) nunca perdem a lucidez. Estão-se positivamente nas tintas.

2 – “a aluna entra em histeria, e por isso vejo com dificuldade que possa ter-se por inteiramente imputável, …”

Aqui, parece ter certezas. E eu, mais uma vez, disponho-me a jurar que a aluna não está “histérica”, pelo menos no sentido patológico do termo, precisamente aquele que poderia fundamentar a inimputabilidade. Sugiro-lhe o sacrifício de rever o vídeo; repare na expressão de sereno conforto e reconhecimento com que reage às gargalhadas da audiência logo a seguir àquela deixa em que parece histérica e diz: -“Dá-me o telemóvel. Já!”


Já viu? (Estive aqui um bocadinho à espera para continuar).

3 “- não comparemos a responsabilidade dela [da aluna] com a responsabilidade da docente no controle da situação.”

Pois não. São coisas que não podem ser comparadas. A aluna (os alunos) têm toda a responsabilidade. A professora (os professores) foram paulatinamente despojados de toda a autoridade. Logo …


Sr. Jansenista, confesso-lhe a vaidade de me considerar descrito no seu último parágrafo. Na qualidade de professor e na de pai. Mas os «professores-feras» que guarda das suas memórias não iriam sobreviver meia hora num 9º C afagado pela “transigência sistemática de pedagogos” pela “pressão demagógica de políticos” e pela “chantagem dos cadastrados escolares e das famílias que os geram e glorificam.”

Carlos Gonçalves

Arquivo do blogue