O novo Ashram minimalista

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Geração de 70: uma visão íntima

Ao ler a diatribe do Confrade Combustões contra a Geração de 70 (AQUI) ocorre-me a máxima salazarista, «choraremos os mortos se os vivos os não merecerem».
Concordo na essência com o que diz, que a Geração de 70 é um quisto demasiado proeminente na goela portuguesa para nos deixar digerir projectos de identidade cultural sem nos fazer doer a deglutição.
Não devíamos chorar esses mortos, porque nessa veneração demasiado longa a um decadentismo entediado avançámos às arrecuas por todo o século XX, fascinados com o tom sépia desse talentosíssimo fogo fátuo colectivo. Ainda hoje reverbera, sem dúvida, é um notável caso de histerese (de persistência de efeitos quando as causas já lá vão). E nisso faço acto de contrição, no meu espelho intelectual revejo-me demasiado «fradiqueiro», arrogante e xenófilo – demasiado indisponível para buscar novos pontos focais nesta coisa que é ser português (se é que há tal coisa).
E no entanto devemos chorar esses mortos, porque, como sempre sucede na história das ideias, não há verdadeiras heranças, há uma apropriação criativamente adulteradora, e nessa os que vieram depois da Geração de 70 evidenciaram uma espantosa inépcia, uma total astenia mental, nada mais acrescentando do que uma réplica ainda mais oca do que o original – eu sei que a tese do Confrade Combustões é a de que isso se deve à doença implantada pelo Grémio «fin de siècle».
E no entanto... talvez não devamos chorar esses mortos, porque eles representam a forma mais rematada de nos iludirmos quanto à nossa condição culturalmente periférica, que podia ser salutarmente resgatada por uma apologia de tudo o que é periférico (como o têm feito, com o mesmo mar e o mesmo Sol mas sem a poeira e as grilhetas, os californianos, por exemplo), mas nos talentos daquelas cabeças iluminadas se tornou a glossolalia do colbertismo livresco.
Hesito... choramos ou não choramos... por mim, fico-me talvez por «amarfanhantes desilusões escapistas» (que bela frase!), como é próprio num Ashram, e do banho lustral da minha persistente recusa de falar de um «país político» não sai uma lágrima pelo talento daqueles que, caricaturando-o, o colocaram num ponto demasiado central da consciência cultural, ajudando os «literatos» a exercerem por tempo demasiado, mesmo depois de despejados dos cafés, o seu ascendente platónico sobre os homens de ciência (proverbialmente tidos por analfabetos), sobre a «quinta coluna» clerical e, encarniçadamente, sobre aquela gente bisonha que tinha a desdita de viver fora de Lisboa.
Tem imensa razão, também, o Confrade Réprobo nas ressalvas pontuais que faz (AQUI), embora a meu ver as partes benignas do legado não cheguem para uma nota global positiva; mas isso sou eu a tentar esforçadamente deglutir esse «bouquet» muito variegado de talentos que sinto por vezes que me tolhe o discernimento sobre a nossa identidade cultural, que, insisto, a faz mais ridícula do que ela certamente é, que fecha inutilmente as persianas ao nosso mar e ao nosso Sol californianos, que desaprendeu a «joie de vivre» e se arrasta molemente com referências fanadas à lapela (também nisso tem razão o sempre oportuno João Gonçalves (AQUI), eles tiraram o retrato apenas, eu acrescentaria que, num Dorian Gray às avessas, ficámos apegados ao retrato e alijámos tudo o resto).
Quanto às fraquezas dos homens da Geração de 70... ui, que escol haveria se sublinhássemos sempre esse «demasiado humano»! Não há grandes homens para os «valets de chambre» que os viram de camisa. Nisso eu chorá-los-ia, porque foram muito humanos, nas suas grandezas e misérias, e não precisaram de altares e de dourados e de memórias selectivas para lhes venerarmos ainda hoje o talento.
Gente execrável? (LER) Não nego, mas foi esse o preço a pagar para que sobre as suas campas nos deleitássemos nestas reflexões agridoces, neste esbracejar dentro de uma crisálida ainda inundada da luz que nos emprestaram com as suas combustões pessoais – a forma mais dilacerante de «vencer a lei da morte», é certo, mas talvez a única acessível a leigos neste mundo sub-lunar. Falámos ou não falámos apaixonadamente deles?

1 comentário:

cristina ribeiro disse...

Tem muitíssima razão o Miguel em estar satisfeito por ter trazido à liça tais contributos; e nós, leitores, temos razões para estarmos satisfeitos com a leitura dos mesmos...

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