O novo Ashram minimalista

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Aquilino no Panteao

Lê-lo cansa-me, o virtuosismo verbal é demasiado intenso para permitir uma leitura sustentada e lúcida. Os meus passos tropeçam com demasiada frequência no arame farpado de alusões que já não são as do Portugal urbanizado e asséptico que eu sempre conheci, e, mais do que suscitarem a minha curiosidade para navegar por entre elas rumo a um Portugal porventura mais idiossincrático, mais vivido e sofrido, mais respirado, mais pisado e suado, as alusões palavrosas intimidam, quase hostilizam a minha impaciência – aquela que se afadiga em gestos para prencher o vazio do pensamento.
O problema é meu, é óbvio, da minha negregada e injustificável falta de tempo. Se eu arranjasse tempo saborearia, não tenho dúvida, cada palavra, cada vírgula, cada interjeição; desfiaria em cada alçapão lexicológico o novelo da memória do país que morreu quando eu nascia, sentiria magicamente espelhada na torrente da prosa uma imagem que associo à memória de pessoas que amei e partiram, mais autenticamente livrescas e mais arreigadamente telúricas do que alguma vez o consentirá este meu pseudo-cosmopolitismo plastificado, normalizado e europeizado.
Levaram-no hoje para o Panteão, e acho justo. Isso não fará com que mais alguém o leia, e eu decerto não o lerei mais por isso; mas hoje entrou no Panteão um homem genial, no sentido de que, nas suas grandezas e misérias, foi verdadeiramente preter-natural, criou e recriou-se a si mesmo, transfigurou e fascinou por alguns decénios a imaginação daquela ínfima parte do país que sabia, e gostava, de ler. Os que o leram já o tinham colocado num certo panteão, no meu caso o das divindades cruéis que brilham tanto que se tornam luciferinas e agrestes, tão feéricas no seu talento que é difícil sustentar o olhar que se ergue para elas, mas ao mesmo tempo demasiado humanas na mescla indissolúvel de bem e de mal.
É por haver gente como ele que o país empobrece quando lê tão pouco.

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