Tem razão no que diz, todos os livros lidos mudam um pouco a vida, ao menos naquela acepção muito restrita de que ocuparam o bem escasso que é a atenção, de que roubaram o tempo – e de que depois deles somos aquelas pessoas cuja atenção foi ocupada naquele momento por aquele livro, aqueles a quem o tempo gasto naquele livro nunca mais será devolvido.
Numa acepção que adivinho mais próxima daquilo que o Confrade quis dizer, há sempre um incremento, por infinitesimal que seja, causado pela adição do que é lido: ler permite-nos a imersão em vidas e inteligências que não são a nossa, mesmo quando ambas são ficcionadas, permite-nos aditar aquilo que a experiência directa não nos dá, seja em quantidade, seja em ornamento, seja em valores.
Puxando a brasa mais à minha sardinha, há ainda algo de enriquecimento espiritual para-religioso na absorção do conteúdo de qualquer livro, e em especial dos livros do «cânone literário contamporâneo». Estamos em civilizações que, posto que secularizadas, assentam em religiões «do livro»; se não encontramos já os nossos modelos de vida em mártires e santos, assustados que estamos com as formas extremas que apresentavam os seus arquétipos de edificação, em contrapartida vamos buscar a tipos literários, ou retirados da literatura para outras formas de comunicação, esses modelos: modelos mais próximos, mais falíveis, menos exigentes e implacáveis, mais plausíveis e complacentes para connosco. Neste outro sentido, toda a leitura é uma edificação, toda ela nos (trans)forma.
Dou tudo isso de barato, mas presumi que «modificar a vida» significava algo de mais arrebatador, de bouleversant – algo como uma revolução na forma de o leitor se perceber a si próprio e avaliar as coisas em seu redor.
Já escrevi vários livros, mas nunca uma obra literária; sempre que sinto a tentação de fazê-lo assalta-me a convicção de que tudo não passaria de um plágio daquela obra que me arrebatou, de que nunca poderia fazer mais do que multiplicar-me em mais ou menos subtis, mais ou menos conscientes, paráfrases dela. Tantas vezes me disseram, na juventude, que tinha talento literário, que me convenci de que um dia essa obra literária da minha autoria haveria de aparecer, quase como uma inevitabilidade. Depois de ler Proust percebi que não, que essa minha obra literária ficaria definitivamente por escrever, e com toda a justiça, e que eu seria muito mais feliz superando, através de palavras alheias – fazendo-as falar por mim –, essa ingénua pretensão juvenil. Isso, julgo, é «modificar a vida» no sentido mais poderoso que pode associar-se ao efeito de uma leitura.
Puxando a brasa mais à minha sardinha, há ainda algo de enriquecimento espiritual para-religioso na absorção do conteúdo de qualquer livro, e em especial dos livros do «cânone literário contamporâneo». Estamos em civilizações que, posto que secularizadas, assentam em religiões «do livro»; se não encontramos já os nossos modelos de vida em mártires e santos, assustados que estamos com as formas extremas que apresentavam os seus arquétipos de edificação, em contrapartida vamos buscar a tipos literários, ou retirados da literatura para outras formas de comunicação, esses modelos: modelos mais próximos, mais falíveis, menos exigentes e implacáveis, mais plausíveis e complacentes para connosco. Neste outro sentido, toda a leitura é uma edificação, toda ela nos (trans)forma.
Dou tudo isso de barato, mas presumi que «modificar a vida» significava algo de mais arrebatador, de bouleversant – algo como uma revolução na forma de o leitor se perceber a si próprio e avaliar as coisas em seu redor.
Já escrevi vários livros, mas nunca uma obra literária; sempre que sinto a tentação de fazê-lo assalta-me a convicção de que tudo não passaria de um plágio daquela obra que me arrebatou, de que nunca poderia fazer mais do que multiplicar-me em mais ou menos subtis, mais ou menos conscientes, paráfrases dela. Tantas vezes me disseram, na juventude, que tinha talento literário, que me convenci de que um dia essa obra literária da minha autoria haveria de aparecer, quase como uma inevitabilidade. Depois de ler Proust percebi que não, que essa minha obra literária ficaria definitivamente por escrever, e com toda a justiça, e que eu seria muito mais feliz superando, através de palavras alheias – fazendo-as falar por mim –, essa ingénua pretensão juvenil. Isso, julgo, é «modificar a vida» no sentido mais poderoso que pode associar-se ao efeito de uma leitura.
3 comentários:
Meu Caro Jansenista,
ora aqui está um post em que concordamos na totalidade. Com efeito, quis alertar para a acepção de mudança que dá como mais próxima do que eu teria pretendido dizer, mas também da que precede e o Jans, superiormente, enunciou.
Igualmente a importância civilizacional como derivada do tronco das Religiões do Livro foi por mim aludida numa série cansativa mas bem intencionada que em Agosto publiquei, referente a Imagens da Leitura. O segundo episódio, creio.
No tocante ao abalo que refere como a interpretação que vingou no Seu Espírito, diria que é uma sobra do Existencialismo culturalmente dominante décadas atrás, a redução das mutações aos estímulos vitais mais fortes. Um pouco como os apreciadores de manjares demasiado temperados, os quais acabam por perder de vista o sabor original do arroz que qualquer depauperado camponês asiático mantém bem presente.
Mas não creia que só no Passado disseram que tem talento literário. Este maldito maçador reafirma-o agora mesmo. Não Se deixe desmotivar por não ter já vinte anos, Conrad começou mais tarde e foi... Conrad. Além de que me parece grande injustiça feita ao delicado e sensível Marcel dá-lo como antecedente do Prof. Cavaco, ao instilar a noção de que, como o eucalipto, seca tudo em redor.
Abraço e mãos à obra!
É um privilégio assistir a uma conversa tão cheia de sabor e saberes!
Caro Senhor Jansenista.
O meu inquietismo conduziu-me amigavelmente para as suas bandas. Divergências à parte ( não vamos falar de Bossuet e Nicole, pelo menos para já, para não abrir hostilidades) gostaria de o convidar a vir visitar o jardim privado de uma pequena aprendiza de misticismo quieto ( e quiet) que se dedica às artes da botânica.
Terá de saltar o muro, pois o meu mundo não é do seu reino, e, adepta sempre do "meio mais curto de chegar a Deus", fiz-me assim chegar assim, deste modo tão heterodoxo.
Cumprimentos heréticos.
Madame Guyon
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