O novo Ashram minimalista

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Les Copains d'Abord

(Re)vejo-os a preto e branco, crianças inodoras e emudecidas fitando atentamente uma câmara – os medos, os sonhos, as alegrias e as impiedades muito tenuemente associadas, no meu espírito, àquele turbilhão de vida congelado e eternizado, eu que quase juraria ouvir ainda o eco chilreante na topografia daqueles sorrisos imaculados.
Quando nos reencontrámos muitos traziam essas fotografias, como se quisessem comprovar as diferenças; eu dispensei isso, sabendo de antemão o impacto que causaria a profunda metamorfose dessas crisálidas casualmente agregadas sobre a gravilha ensopada das manhãs de Outono, agora, tantos anos volvidos, adensadas com o peso de trajectórias pessoais muito alongadas e centrífugas, despida a bata e o uniforme, adquiridos os vícios, as manias e as máscaras, sulcados os primeiros vales naquela topografia facial.
Lembro-me do espanto que muitos manifestaram de reencontrarem o seu colega «marrão», uma criança tímida e esquiva, transformado num homenzarrão de voz cava e barba rija, muito físico tanto na sua ironia truculenta como no seu afecto, muito ágil nos seus passos, inesperadamente irreverente.
Eu espantei-me também com muitos, mas mais pelos seus destinos do que pelas aparências – como algumas promessas seguras tinham sido relegadas pela Roda da Fortuna, e outros tinham vencido contra a improbabilidade (dois deles estão entre os cem mais ricos do país); como tantos tinham acabado comunistas (triste geração, a minha) e uma mão-cheia ficara com os miolos «torrados» com a droga; como tantos tinham feito das suas vidas experiências muito significativas e interessantes – cientistas, músicos, pintores, líderes cívicos – sem soçobrarem ignobilmente na servidão do vil metal; como em quase todos tinha ficado viva a chama da excelência e da superação, uma chama que se ateia na infância – ou nunca.
Lembrei-me deles também porque o Sol regressou, e porque quando os vejo nas fotos a preto e branco sei imediatamente que o que lhes falta é o calor do Sol, aquele calor que ainda é mais tórrido quando se é criança e se passa horas a fio em corridas sem destino sobre a gravilha ensopada.

6 comentários:

Je maintiendrai disse...

É verdade... E porque é que os revemos todos a preto e branco? E com alguma melancolia; pelo que já não volta...

Combustões disse...

Belíssimo

Lourenço Viegas disse...

E nessas reuniões, de volta a casa, (traveling home, paul theroux) há sempre odores, umas m(M)adalenas, gotas que seguram o edifício da memória (ou lá o que era...). O cheiro do fundo dos bolsos dos bibes, a que todos ainda cheiram, mesmo em kodachrome.
lv

Luísa A. disse...

Sem dúvida que o que mais surpreende não são as alterações «topográficas», mas a improbabilidade de alguns percursos: os daqueles que se perdem e dos outros que se recuperam. O mundo das oportunidades é um mundo cheio de mistério para mim… e de alguma injustiça, talvez.

Pedro Botelho disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Pedro Botelho disse...

Preto e branco? Consta que era preto e azul, com burcas obrigatórias e rigorosos checkpoints pelo meio. E tudo isso ha' escassa meia dúzia de éones na escala geológica. Ora veja lá como as coisas mudam. Se calhar até haveria esperança para os islamistas, esses grandes malandros, se não fosse a cegueira hipócrita das ligas da virtude ocidentais...

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